Esta é daquelas perguntas que mesmo quando feita numa outra língua estrangeira não deixa de causar arrepios. Mas não somos todos um pouco autistas?, perguntam às vezes. Mesmo até no próprio processo de avaliação, os pais e os próprios acabam por fazer a determina altura esta mesma pergunta. Mas eu também conheço algumas pessoas que têm certos comportamentos destes e isso significa que eles também são autistas?, perguntam. Eu também sou um pouco tímido e tenho poucos amigos e sempre gostei de fazer as coisas da minha maneira. Isso quer dizer que eu também sou autista?, questionam.
A resposta mais rápida a esta mesma questão é NÂO. Não somos todos autistas ou um pouco autistas. Mas a pergunta carece de uma explicação mais aprofundada. Seja porque há mais informação igualmente importante para poder dizer sobre o assunto. Mas também porque a própria explicação acaba por ser uma forma de informar e sensibilizar as pessoas.
Ou seja, é sabido que as características que se encontram presentes num diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo se encontram dispersos na população em geral. Ou seja, nós podemos encontrar algumas das características presentes numa pessoa autista igualmente presente numa pessoa não autista. Até porque está bastante bem estabelecido que as características comportamentos encontradas no autismo variam tanto na gravidade mas também na qualidade. E como tal, além do diagnóstico clinicamente definido de Perturbação do Espectro do Autismo, é também cada vez mais reconhecido que muitas pessoas que não cumprem os critérios de diagnóstico tal como estão referidos, ainda assim exibem traços comportamentais qualitativamente semelhantes. Por exemplo, essa questão começou inicialmente por ser observada nos pais de algumas pessoas autistas. Apesar de ser verdade que se encontram com maior probabilidade estes traços do espectro do autismo nos pais e outros familiares, até porque é sabido acerca do contributo genético presente nesta condição. É sabido que estes mesmos traços se encontram normalmente distribuídos pela população em geral e de uma forma mais ampla. Sugerindo esta ideia que a construção do autismo pode ser semelhante ao traço, formando um contínuo na população em geral.
E aqui algumas pessoas voltam a perguntar e com alguma confusão interna à mistura - Mas isso então não quer dizer que eu tenho razão em afirmar que todos somos autistas? E que todos nós somos um pouco autistas? E a resposta mais rápida continua a ser NÃO. Não, não é verdade que todos sejamos autistas ou um pouco autistas. Até porque não existe essa questão de ser um pouco algo em saúde mental. E o facto de dizermos que as pessoas na população em geral apresentam alguns traços, é preciso sublinhar que alguns traços significa que não cumpre os critérios de diagnóstico para tal condição.
Mas então isso pode dizer-nos que é importante poder compreender melhor como é que se apresentam esses mesmos traços comportamentais dispersos na população em geral, certo?
E também por isso, alguns dos instrumentos para o rastreio de autismo, nomeadamente o questionário do Quociente do Espectro Autista (QA, seja com os 50 itens ou a versão reduzida com 10 itens - poderá preencher aqui o questionário com a versão de 50 itens e solicitar feedback), tem servido o propósito de ajudar as pessoas com suspeitas de poderem ter um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo a procurarem uma ajuda especializada. Mas também nos tem ajudado a compreender precisamente que muitas destas características presentes no autismo se apresentam dispersas na população em geral.
Devido às semelhanças qualitativas encontradas entre pessoas autistas com traços clínicos e traços sub clínicos, as medidas de traços autistas têm sido frequentemente usadas para facilitar a investigação nesta área, recrutando pessoas não autistas que variam em níveis de traços autistas auto-relatados. Por exemplo, umas das vantagens em estudar grupos de traços autistas prende-se com as soluções metodológicas que isso nos traz para a realização de vários outros projectos de investigação. Nomeadamente, procurar controlar a comorbilidade de outras condições psiquiátricas associadas ao autismo, e gerir a complexidade existente para formar grupos de controlo adequadamente combinados. Além disso, as diferenças comportamentais relatadas entre pessoas com níveis baixos e elevados de traços autistas muitas vezes espelham diferenças observadas por pessoas autistas e não autistas clinicamente diagnosticados.
E apesar de alguns dos instrumentos propostos para realizar este rastreio, apresentarem um resultado global para a probabilidade de poderem apresentar um diagnóstico de autismo. Também apresentam muitos deles a possibilidade de fornecer resultados para algumas áreas importantes dentro do diagnóstico de autismo. Seja as competências sociais, mas também a comunicação, mudança da atenção, criatividade, etc. Contudo, e apesar dos resultados promissores de alguns destes instrumentos, nomeadamente do questionário do Quociente do Espectro do Autismo, também é verdade que estes instrumentos não apresentam questões para rastrear as questões relacionadas com a sensorialidade, por exemplo.
E apesar das características psicométricas dos instrumentos referidos, é importante poder compreender que existem falhas e oportunidades de melhoria. Nomeadamente, haver instrumentos que possam apresentar propostas de sub escalas que olhem para os aspectos da motivação e preferências sociais, mas também da capacidade de comunicação verbal e não verbal, movimentos repetitivos, sensibilidade sensorial atípica, interesses restritos, insistência na igualdade e rigidez e inflexibilidade. E muitos dirão - Mas isso é ir ao encontro daquilo que são os critérios de diagnóstico de uma Perturbação do Espectro do Autismo? E têm razão. Para além de pensarmos ser igualmente importante poder incluir aspectos relacionados com o comportamento de camuflagem social. Ainda que este não esteja relacionado com os critérios de diagnóstico, é sabido ser um comportamento observado com frequência, nomeadamente nas raparigas e mulheres.
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