Tocaram-me à campainha! Não é habito acontecer e também por isso demorei. Por isso e porque quem costuma tocar à campainha costumam ser pessoas. E estas trazem perguntas ou conversas. E na maior parte das vezes não me apetece. Mas não pelas razões que as pessoas habitualmente pensam. Não sou antisocial. Costumo falar muito com os meus cães, e eles comigo. Perebemo-nos perfeitamente, e eu não preciso de ladrar para que eles me entendam. Assim como eles não precisam de falar como eu. Compreendemo-nos. Fazemos o esforço para que isso aconteça. Tocaram novamente na campainha. Os cães começaram a ladrar. Já devem ter tocado mais do que duas vezes. Talvez seja melhor ir ver o que é. Fui à janela e estava lá uma pessoa. Uma jovem rapariga com uns papeis na mão. Sorriu para mim. Talvez tenha sorrido ao ver que os cães também se assomaram à janela. Posso fazer-lhe um questionário? perguntou-me. Nunca ninguém se tinha dado ao trabalho de vir até minha casa e querer saber a minha opinião. O que quer saber? perguntei-lhe. Não fosse querer perguntar-me algo que eu não soubesse. Se assim fosse não teria nada a dizer e não lhe fazia perder o tempo, ou o meu. Estamos a querer compreender a relação das pessoas com os seus animais domésticos! disse-me. Não foi preciso mais nada para descer sem sequer ter fechado a janela. Querer saber a minha opinião e ainda por cima falar sobre o assunto que eu mais gosto parecia uma combinação que eu diria impossivel ou uma num milhão, mas pelo vistos estava a acontecer. Abri-lhe a porta. Ela avançou. Disse-lhe que não recebia pessoas em minha casa. Ela parece não ter percebido e parecia querer continuar. Não sabia como lhe havia de dizer ou fazer. Posso começar a responder ao questionário? perguntei-lhe. Parece ter resultado. Muito bem! disse ela.
Idade? perguntou-me. Não começavamos bem! pensei. Não tenho a certeza! respondi-lhe. Olhou para mim com uma cara que eu não percebi o que queria dizer. Acha que tem mais de 70 anos? perguntou-me. Fiquei a pensar no porquê daquele número, setenta! Fiquei com vontade de lhe perguntar o porquê de setenta, mas não consegui. Abanei a cabeça a dizer que não. Sessenta? perguntou-me. Porque será que ela não me pergunta a data de nascimento? questionei-me. Assim seria mais fácil. Abanei a cabeça novamente. Cinquenta? voltou a questionar. Abanei a cabeça ou tra vez. Ela mudou a expressão, mas eu continua sem saber o que se estava a passar com ela. Disse-lhe para esperar. Os cães não sairam da porta e também por isso ela não entrou. Dei-lhe o cartão de cidadão. Ficou a olhar para mim com outra cara. Mas eu continuei sem perceber o que estaria a pensar. Tem cinquenta e sete, é isso? perguntou-me. Não percebi o porquê de me estar a perguntar se estava a olhar para o cartão de cidadão. A não ser que não soubesse como eu fazer esse tipo de aritmética mentalmente. Nunca tinha encontrado ninguém assim como eu. Abanei a cabeça com um sim sem ter muito bem a certeza se a resposta seria aquela que ela esperava. Muito bem! disse e registou nos papéis que tinha na mão. Escolaridade? perguntou-me logo de seguida. Fui apanhada de surpresa e fiquei parada a pensar. Foi à escola? perguntou-me. Devo ter feito alguma coisa com a minha cara porque ela sorriu nesse mesmo instante. Não sei se terei feito uma cara igual. Se tinha ido à escola? perguntei-me para dentro. Não fiz outra coisa na vida! pensei. Disse-lhe que tinha três cursos superiores, dois de história e um de tradução. E que tinha feito um mestrado em linguistica e uma pós-graduação em germanicas. Apontava tudo com uma cara novamente diferente e a olhar para mim. Não percebia! continuava sem perceber. Com que frequência costuma levar os seus animais ao veterinário? perguntou. Nunca, Quase nunca, Por vezes, Frequentemente! disse e parou a olhar para mim. Não percebi o que queria que eu dissesse. Qual das opções é que escolhe? perguntou. E voltou a repetir: Nunca, Quase nunca, Por vezes ou Frequentemente? Como é que eu poderia dizer nunca? pensei. Como é que alguém com animais haveria de dizer nunca? Ou quase nunca? A minha cabeça não parava de fazer perguntas a mim mesma e não saia nenhuma resposta. Quer escolher uma opção? perguntou-me. Eu queria, mas não sabia o que é que Frequentemente significa e não sabia como lhe haveria de responder. os cães devem ter notado e percebido a minha impaciência e começara a ladrar. Ela deve ter ficado assustada e disse-me que viria em outra altura. Fechei a porta de seguida. Passei dois dias a pensar o que Frequentemente haveria de querer significar. Depois disso fiquei a pensar quando é que ela viria. Ela tinha dito que voltava. Esperei duas semanas. Nunca mais apareceu.
Esta breve história foi criada. É ficticia, mas tem uma base muito real na vida das pessoas autistas. Lembrei-me de a contar por causa dos questionários, inventários e escalas que os psicólogos (e não só) costumam usar no seu trabalho de investigação e clinico.
Estes instrumentos de rastreio e/ou avaliação permitem recolher dados sobre os pensamentos, sentimentos e comportamentos dos respondentes em relação a determinada situaçõa que lhe esteja a ser colocada. São instrumentos de auto-preenchimento e como tal reflectem a percepção que os próprios têm acerca de si mesmos em relação ao que lhes é perguntado. E como tal é importante poder pensar no próprio enviesamento a que estes resultados poderão estar sujeitos. E como tal, importa seguir todo um conjunto de metodologias adequadas para a sua utilização e interpretação de resultados. Além de ser fundamental pensar sobre a importância dos próprios respondentes compreenderem aquilo que lhe está a ser perguntado, bem como as possibilidades de resposta poderem ter um reflexo daquilo que os respondentes desejam responder.
Estas e outras questões no uso das metodologias quantitativas não é novo. E mais recentemente tem sido falado acerca da importância da sua reflexão nos instrumentos usados para a população autista. Já tenho escrito em outros textos sobre o facto de estarmos a usar questionários para a ansiedade e depressão, e que apesar de estarem a ser observados do ponto de vista clinico, quando as pessoas autistas os preenchem frequentemente observamos que os resultados parecem não reflectir a realidade observada. E o mesmo acontece para outros constructos que se pretende melhor saber e compreender no espectro do autismo. E não será por acaso que os investigadores têm estado cada vez mais a recorrer à própria comunidade autista para os ajudar a rever os instrumentos usados em determinada área para estes poderem ir ao encontro da compreensão daqueles que os irão preencher.
Frequentemente tenho pessoas autistas que me enviam mail a dizer que não responderam a um determinado questionário ou que o fizeram mas com muita relutaância do que responderam precisamente porque não perceberam a questão colocada, mas também as opções fornecidas. Tal como o exemplo do Frequentemente. O que significa frequentemente? perguntam várias vezes. Ou o Às vezes quer dizer o quê?
Mas não se pense que isto ocorre apenas nos questionários. Esta questão é transversal a qualquer questão e área de vida das pessoas autistas. Quantas vezes a pessoa autista diz que não compreende o que significa alguém lhes dizer - Daqui a pouco já vou ter contigo! O que é daqui a pouco? Quanto tempo é daqui a pouco? A subjectividade do conceito ou o facto de poder significar várias possibilidade e não somente uma leva a que as pessoas autistas stinam vários constrangimentos e ansiedade em multiplas situações pessoais, sociais ou profissionais.
Se pensarmos que muitos dos questionários e outros instrumentos usados para avaliar o comportamento das pessoas autistas tem vindo a produzir resultados sobre si ao longo destes anos, ainda que vários desses instrumentos possam não estar tão bem adequados àquilo que as pessoas autistas pensam, sentem ou fazem. Podemos pensar no enviesamento a que alguns destes mesmos resultados nos vão levando na compreensão das pessoas autistas. Assim como frequetemente uma pessoa não autistas assume que uma pessoa autistas não quer socializar, conversar, partilhar ou outra questão qualquer. Até porque não está a conseguir compreender aquilo que a pessoa autistas poderá estar a conseguir compreender ela própria da situação.
Esta questão aqui representada poderá muito bem ser enquadrada no conceito de dupla empatia. Ou seja, quando duas pessoas com um perfil de funcionamento diferente se encontram e procuram interagir, podem apresentar dificuldades semelhantes na capacidade de se compreenderem mutuamente. Ou seja, não assumir que o Outro por ser uma pessoa autista irá ser ela a única a ter dificuldade em conseguir compreender. Mas o facto de essa ideia de deficit aparecer nos manuais de diagnóstico e em outras tantas revistas cientificas e na própria narrativa do modelo médico e dos psicólogos, vai reforçando na Sociedade a ideia dessa dificuldade ser somente da pessoa autista. E vai inclusive tornando cada vez mais presente a ideia desse deficit sentido pela própria pessoa autista, que vai internalizando e cristalizando essa auto imagem desvalorizada e possuidora do mal, do erro, dquilo que traz dificuldade ao processo de comunicação e interacção com o Outro. Em suma, à culpa e vergonha de ser ela própria.
Frequentemente, tal como a jovem perguntava à senhora Rosa (nome fictício) de 57 anos e que tem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, pode ser derivação de frequente; sendo um adjectivo de dois géneros, 1. que sucede muitas vezes, continuado, 2. assíduo, diligente, 3. vulgar, incansável. Já estou a ver a jovem a explicar isto à senhora Rosa, e esta a responder-lhe: Tudo isso é muito certo e eu já o li várias vezes no dicionário. Contudo, continuo a ter a mesma questão! O que é isso de frequentemente?

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