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Diz ahhhhhhhh.

Artur (nome fictício), não te esqueças de lavar a língua no final, diz o pai. A língua? Mas porquê?, pergunta o Artur. Artur tem sete anos e só há pouco tempo é que começou a lavar sozinho os dentes. E como tal é importante poder explicar-lhe a importância da escovagem da língua no final por causa de todo um conjunto de resíduos que estão nesta zona da boca e que faz parte de uma higiene oral adequada.


Da mesma forma que muitos já ouviram a frase - Se não tomas tento na tua língua ponho-te uma malagueta. Principalmente depois de alguém ter dito alguma asneira ou algo semelhante. Mas também mais tarde na vida vamos ouvindo certas dicas de alguns amigos ou pessoas que estão ao nosso lado - Não devias ter dito aquilo, o rapaz ficou sensibilizado!, por exemplo.


Ultimamente têm sido muitos os exemplos acerca da questão da linguagem e mais especificamente da forma como nos dirigimos a determinado assunto, pessoa ou grupo de pessoas, independentemente do contexto onde o realizamos. Nas redes sociais temos assistido a todo um palco de inúmeras situações, não só lamentáveis mas igualmente agressivas. Mas também no nosso contexto quotidiano de relações, órgãos de comunicação social (i.e., Tv, jornais e revistas), instituições privadas e públicas tal como na Assembleia da Republica, etc. São vários os exemplos e contextos, assim como os assuntos e as pessoas envolvidas numa linguagem que precisa de ser repensada.


No campo da deficiência os exemplos são muitos e continuam a ter um impacto devastador na vida das pessoas, nomeadamente pela forma como mantêm o estigma relativamente à condição da pessoa. Por exemplo, a própria palavra deficiência não é consensual entre todos. São muitas as pessoas que referem que a utilização da palavra deficiência é pejorativa.


Eu ouvi uma pessoa autista a dizer que é uma pessoa com deficiência. É verdade?, pergunta. Eu sou uma pessoa autista e não me considero uma pessoa com deficiência, refere. Eu não gostei de ter ouvido a palavra deficiência associada ao autismo e não sei explicar muito bem porquê, conclui.


Sendo que são igualmente muitos aqueles que destes optam por usaram palavras como capaz ou incapaz quando se referem a pessoas com deficiência. Já para não falar de outras designações mais ofensivas como coitadinho. Ou não estando a falar de palavras isoladas podemos pensar em formas de muitos pensarem acerca da deficiência e das pessoas com deficiência como alguém que não será capaz de fazer isto ou aquilo, referindo frequentemente que diz isso em comparação às outras pessoas sem deficiência e não porque queriam estar a diminuir a pessoa com deficiência em si.


Tenho ouvido todo um conjunto de formas diferentes das pessoas falarem, refere. Pessoas autistas, pessoas com autismo, autistas, pessoas com diagnóstico de perturbação do espectro do autismo, pessoas com deficiência, já perdi a conta das formas diferentes, acrescenta. Eu quero que me chamem pelo meu nome. Eu sou o David (nome fictício). Se não souberem o meu nome que me perguntem. Além disso eu exijo que me respeitem pelo que eu sou, seja em relação ao autismo ou a outra coisa qualquer, conclui.


Para além da palavra deficiência ou pessoa com deficiência, a designação capaz e o seu contrário, incapaz, é uma outra questão que muito frequentemente é usada quando as pessoas se referem a alguém com esta condição. Ele não consegue chegar lá e por isso é que precisa de um conjunto de apoios. Por exemplo, as situações das pessoas em cadeira de rodas. Quantas vezes não ouvimos essas frases - Ele não consegue chegar ao terceiro piso e por isso é que precisa de uma rampa de acesso e de elevador. E se procurarmos confrontar a pessoa com o facto de não ser verdade que a pessoa em cadeira de rodas não consegue, iremos perceber.


A falta de atenção à deficiência ou deficiência em geral pode ter uma explicação simples. Apesar da pessoas com deficiência, nomeadamente pessoas surdas, com mobilidade reduzida, invisuais, entre outras, estarem presentes desde sempre na sociedade, o certo é que não havia uma designação especifica para as mesmas. E como tal, tivemos de esperar até ao século 19 para usar esses mesmos conceitos, e de passar a colocar variações na função humana e passar a se formar categorias de anomalia e desvio. Uma vez estabelecidas tais categorias, tornou-se possível falar, e generalizar, sobre "os deficientes", e são vários aqueles que o têm feito do ponto de vista académico. Sejam psicólogos, sociólogos, filósofos, pedagogos, médicos, entre outros, têm procurado reflectir, ainda que de determinadas perspectivas diferentes a questão da deficiência. Nomeadamente, desde a segunda metade do século passado, têm procurado eliminar e ou reduzir desvantagens na forma de tratar a deficiência como a fonte primária dessas mesmas desvantagens, seja com uma correção médica ou com compensação legislativa. E mais recentemente, são muitos aqueles que procuram olhar a deficiência como fonte de descriminação e opressão, assim como de identidade de grupo,, à semelhança do que tem vindo a acontecer com as questões de ração ou sexo em aspectos semelhantes.


E se dúvidas houver pensem no seguinte exemplo. Durante muitos anos, e ainda se verificam alguns resquícios desse tempo, houve uma preocupação de se comparar o desempenho de homens e mulheres ou de pessoas de raça negra e branca. O certo é que essa mesma prática tem caído em desuso e criticada quando se verifica a sua existência. Por exemplo, se pensarmos que o bem estar pode ser afectado pelas características em que se baseia a classificação de raça ou sexo, rapidamente muito se irão insurgir em relação a essa mesma tentativa. Contudo, parece haver um grande interesse nesta questão quando o tema é pessoas com deficiência. E há quem defenda estas iniciativas com necessidade de se conhecer a realidade das pessoas com deficiência para melhor se intervir. Continuando a perpetuar este modelo capacitista de olhar para as pessoas com deficiência.


Porque convenhamos, as pessoas com deficiência vão ter um maior impacto e negativo no seu bem estar e qualidade de vida, isso é um facto inegável. Contudo, não é verdade que esses mesmos resultados sejam derivados do facto de serem pessoas com deficiência, mas sim devido a se continuar a perpetuar esta mesma visão. E que acaba por desempoderar as pessoas com deficiência de uma forma directa e indirecta. Seja pela forma como estes próprios estudos impactam negativamente na sua própria auto-representação. Mas também como os outros, nomeadamente a família, profissionais de saúde e a sociedade de uma forma geral continua a olhar as pessoas com deficiência como não sendo capazes.


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