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Cuidar do cuidador

Hoje celebra-se o Dia Mundial do Cuidador Informal. Uma data que, mais do que simbólica, deve servir como um espelho coletivo, onde se refletem as histórias silenciosas de quem vive o cuidado como missão diária. Em Portugal, o papel do cuidador informal é, ainda hoje, pouco reconhecido, mal apoiado e frequentemente solitário.


O João (nome fictício) é pai do Carlos (nome fictício). Duas vezes por mês ajuda-o a fazer a barba. O Carlos tem 21 anos e um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, nível 2. Precisa de apoio substancial em várias dimensões do quotidiano. Provavelmente, quando chegar aos trinta, precisará de fazer a barba mais vezes, assim como continuará a precisar de ajuda para organizar o dia, gerir emoções, ou lidar com as exigências da vida adulta. Essa tarefa da barba é assegurada pelo João, mas há muitas outras que recaem sobre a Marta (nome fictício), mãe do Carlos.


João e Marta são cuidadores informais. São o rosto de uma realidade que se repete por todo o país: familiares que, sem formação específica e sem remuneração adequada, dedicam-se a apoiar um ente querido com deficiência. O seu papel está reconhecido na Lei n.º 100/2019, que criou o Estatuto do Cuidador Informal. Contudo, o reconhecimento legal nem sempre se traduz em reconhecimento social ou em medidas concretas de apoio. Muitos cuidadores continuam sem acesso a subsídios, a descanso, a acompanhamento psicológico ou a redes comunitárias de suporte.


Nos últimos anos, o regime jurídico do cuidador informal foi alvo de reformulações significativas. A Lei n.º 20/2024 e o Decreto-Lei n.º 86/2024 introduziram alterações que procuram responder às críticas que o sistema vinha acumulando. Entre as mudanças de maior relevo destaca-se o alargamento do conceito de cuidador informal, que agora pode incluir pessoas sem laços familiares diretos com a pessoa cuidada. Foram também flexibilizadas as exigências relativas à partilha de domicílio e reforçadas as medidas destinadas à conciliação entre o cuidado e a vida profissional. Estas alterações representam um avanço na direção certa, pois reconhecem a diversidade das relações de cuidado e procuram garantir maior equidade no acesso ao estatuto.


Apesar desses progressos, o caminho está longe de concluído. Persistem barreiras burocráticas que dificultam o reconhecimento efetivo dos cuidadores, os apoios financeiros continuam insuficientes e a cobertura territorial das medidas de suporte é desigual. A ausência de políticas robustas de descanso e de formação específica continua a colocar os cuidadores numa posição de vulnerabilidade. É também urgente garantir que a legislação seja acompanhada de mecanismos de fiscalização e de implementação consistentes, de modo a evitar que o estatuto permaneça um direito teórico, distante da vida real de quem cuida.


Além disso, o cuidado continua a ser, predominantemente, assegurado por mulheres. São mães, esposas e filhas que interrompem carreiras, renunciam a projetos pessoais e assumem uma sobrecarga física e emocional contínua. Este dado revela não apenas uma desigualdade de género persistente, mas também uma lacuna estrutural no modo como o Estado e a sociedade distribuem e valorizam o trabalho de cuidado.


Cuidar é um ato de amor, mas é também um ato de resistência. Exige uma presença constante, uma vigilância emocional e uma disponibilidade quase ilimitada. E é precisamente nessa entrega sem pausas que se instala o risco. O cuidador informal, sem apoio sistemático, tende a negligenciar as suas próprias necessidades. A exaustão emocional, o isolamento social e a sobrecarga mental tornam-se frequentes. O cuidador pode sentir-se dividido entre o dever e o esgotamento, entre o amor e a culpa, entre o cuidado e a perda de si mesmo.


A literatura científica mostra que os cuidadores informais, sobretudo de pessoas com perturbações do neurodesenvolvimento, apresentam maior vulnerabilidade a sintomas de ansiedade, depressão e esgotamento emocional. O stress prolongado afeta o sono, a saúde física e o bem-estar psicológico. E, apesar disso, o apoio psicológico estruturado a estes cuidadores continua a ser insuficiente em Portugal.


Paralelamente, importa refletir sobre a necessidade de repensar o próprio modelo de cuidado. A dependência total de um cuidador familiar perpetua um ciclo de vulnerabilidade e sobrecarga. É urgente investir na promoção da autonomia e da autodeterminação das pessoas com deficiência, incluindo as pessoas autistas. A criação de programas de capacitação para a vida independente, o acesso a assistentes pessoais e a serviços de apoio integrados são passos fundamentais.


O assistente pessoal, figura prevista no contexto do Modelo de Vida Independente, representa uma alternativa promissora. Trabalha em parceria com a pessoa com deficiência, promovendo a sua autonomia e reduzindo a dependência da família. Esta abordagem não substitui o afeto e o vínculo familiar, mas redistribui o peso do cuidado, permitindo que o cuidador informal volte a ser também indivíduo, profissional, amigo, cidadão.


Neste sentido, o trabalho com cuidadores informais deve integrar uma dimensão psicológica sólida. O acompanhamento clínico pode focar-se em estratégias de autocuidado, gestão emocional, reconhecimento dos limites pessoais e promoção de redes de suporte social. A psicoterapia, individual ou em grupo, pode ser um espaço de escuta e reconstrução identitária, onde o cuidador reaprende a cuidar de si.


As políticas públicas devem igualmente evoluir para garantir o direito ao descanso, à formação e ao acompanhamento psicológico do cuidador. O investimento em programas de respiro familiar, linhas de apoio emocional e formação em competências de coping e resolução de problemas são medidas urgentes. É também essencial que os profissionais de saúde mental integrem o cuidador nas suas intervenções, não apenas como coadjuvante do processo terapêutico, mas como sujeito de cuidado em si mesmo.


Cuidar de quem cuida é uma exigência ética e social. É reconhecer que o cuidado não pode ser uma tarefa isolada, mas um compromisso coletivo. É compreender que promover a autonomia da pessoa autista é, simultaneamente, libertar o cuidador da sobrecarga e permitir-lhe recuperar a sua própria liberdade.


Neste Dia Mundial do Cuidador Informal, mais do que homenagear, é tempo de agir. É tempo de olhar o cuidador não como uma figura silenciosa de abnegação, mas como alguém que precisa de ser ouvido, apoiado e acompanhado. Só assim se constrói uma sociedade verdadeiramente solidária, onde cuidar não signifique desaparecer, mas coexistir com dignidade, equilíbrio e humanidade.



Nota informativa


Principais diplomas legais sobre o Cuidador Informal em Portugal


  • Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro — Cria o Estatuto do Cuidador Informal e define direitos e deveres do cuidador e da pessoa cuidada.

  • Decreto-Regulamentar n.º 1/2022, de 10 de janeiro — Regula o procedimento de reconhecimento do estatuto e as medidas de apoio.

  • Lei n.º 20/2024, de 8 de fevereiro — Primeira alteração à Lei n.º 100/2019, alargando o conceito de cuidador informal e reforçando medidas de conciliação.

  • Decreto-Lei n.º 86/2024 e Decreto-Regulamentar n.º 5/2024, de novembro de 2024 — Segunda alteração ao Estatuto, com foco na simplificação do processo de reconhecimento, ampliação do conceito de cuidador e reforço dos apoios.


Persistem desafios: a burocracia e a disparidade territorial no acesso ao estatuto, a ausência de apoios psicológicos estruturados, o reconhecimento social insuficiente e a necessidade de integração efetiva do cuidador informal nas políticas de saúde, de trabalho e de proteção social.

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