Autismo nas Pessoas Adultas Mais Velhas: Um Tema que Não Podemos Continuar a Ignorar
- pedrorodrigues

- 3 de nov.
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Prefácio: Um enquadramento que não haveria de ter necessidade de ser feito
Estima-se haver cerca de cinco milhões de pessoas autistas na Europa. Nesta foto, todos os jovens presentes, algures entre os 17 e os 23 anos de idade, apresentam um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Todos eles, apresentam igualmente uma esperança média de vida entre os 70 e 80 anos de idade, um pouco mais baixa que as pessoas não autistas, de acordo com os diversos estudos realizados neste tema. Mas ainda assim, todos eles se tornarão pessoas autistas adultas mais velhas.
Sabemos pouco sobre o autismo no adulto, e ainda menos nas pessoas autistas adultas mais velhas. É preciso inclusive pensar que continuam a haver muitas pessoas autistas que são diagnosticadas tardiamente, acima dos 25 anos de idade, algumas já com 40, 50 ou 60+ anos. Os serviços de saúde, sejam os serviços gerais, mas também os serviços de saúde mental, estão ainda muito pouco preparados para dar uma resposta adequada a estas pessoas. Além da pouca formação que os psicólogos clínicos têm em relação à avaliação, mas também intervenção adaptada a estas idades e características.
A população Portuguesa e não só está a ficar cada vez mais envelhecida. E como tal, os serviços de saúde devem atempadamente procurar adaptar-se. Mas também poderem acompanhar e investigar mais e melhor o perfil de funcionamento das pessoas adultas mais velhas, principalmente as pessoas pertencentes a estas minorias, que ficam quase sempre fora deste interesse. No caso da psicologia clinica, é fundamental que a nossa intervenção clinica possa estar mais e melhor adaptada à realidade de uma etapa ainda pouco explorada e com uma visão muito ancorada em crenças e estereótipos. E que está ainda mais desafasado das necessidades de adaptação das metodologias de intervenção em pessoas autistas adultas mais velhas.
Introdução: A geração invisível
Nos últimos anos, temos assistido a um aumento da consciência sobre o autismo em Portugal. Fala-se mais sobre diagnóstico precoce, inclusão escolar e transição para a vida adulta. Mas há uma realidade que continua quase ausente do debate público e científico: o autismo nas pessoas adultas mais velhas.
Muitas destas pessoas viveram a maior parte da sua vida sem um diagnóstico. Cresceram num tempo em que o autismo praticamente não era conhecido e, por isso, foram rotuladas de tímidas, excêntricas, ansiosas, difíceis ou depressivas. Hoje, algumas chegam aos 50, 60 ou 70 anos a descobrir que afinal são autistas, e essa descoberta pode ser simultaneamente libertadora e dolorosa.
Em Portugal, este tema é quase inexistente na literatura científica e na formação dos profissionais de saúde. Precisamos de mudar isso. Precisamos de compreender o que significa envelhecer sendo autista e o que implica adaptar as respostas clínicas, sociais e comunitárias a esta população que esteve tanto tempo invisível.
Um diagnóstico tardio que muda tudo
Receber um diagnóstico de autismo na idade adulta avançada pode trazer um profundo alívio. Finalmente há uma explicação coerente para décadas de experiências de incompreensão, sobrecarga sensorial ou dificuldades de adaptação social.
Mas este alívio vem muitas vezes acompanhado de luto e tristeza. Muitas pessoas sentem que perderam parte da vida a tentar “ser normais”, sem apoio, sem ferramentas e com um sentimento constante de falhanço. É comum surgirem questões existenciais: “Quem sou eu afinal?”, “Como teria sido se tivesse sabido mais cedo?”
O papel dos profissionais de saúde mental, psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, é fundamental nesta fase. É necessário acompanhar este processo de reconstrução da identidade com respeito e empatia, sem pressa e sem patologizar as diferenças que fazem parte do modo autista de estar no mundo.
O corpo que envelhece e o mundo que continua ruidoso
Com o envelhecimento, surgem novas fragilidades, físicas, sensoriais, cognitivas, que se somam às características do autismo. O ruído, a luz intensa ou a falta de previsibilidade dos ambientes de saúde tornam-se ainda mais difíceis de suportar.
Nos hospitais, a maioria dos profissionais não está preparada para reconhecer ou apoiar uma pessoa autista mais velha. Muitas vezes, comportamentos de sobrecarga sensorial são confundidos com confusão mental ou demência. Pequenas adaptações poderiam fazer uma grande diferença: salas de espera mais calmas, explicações claras, tempo para processar informação, evitar contacto físico inesperado.
Em Portugal, os serviços hospitalares e de cuidados continuados ainda não têm protocolos específicos para pessoas autistas adultas, muito menos para seniores. É urgente criar formações e equipas especializadas que saibam reconhecer e ajustar o atendimento.
A solidão e a perda de pertença
Outro desafio central é a solidão. Muitas pessoas autistas mais velhas vivem isoladas. A reforma, a morte de familiares, a perda de rotinas estruturadas ou o afastamento social agravam o isolamento. E mesmo quando procuram grupos de apoio, descobrem que quase todos se destinam a pessoas mais jovens.
Criar espaços de encontro entre pessoas autistas mais velhas, com dinâmicas adaptadas, pode ser terapêutico e socialmente transformador. Estes espaços devem permitir partilhar experiências de vida, estratégias de coping e histórias de resistência, e oferecer também um sentimento de pertença que tantas vezes lhes foi negado.
Psicoterapia com pessoas autistas mais velhas: o que precisa mudar
A psicoterapia tradicional, tal como é ensinada e praticada, foi desenhada para pessoas neurotípicas. Para que seja eficaz com pessoas autistas mais velhas, precisa de se adaptar.
O ritmo das sessões deve ser mais lento, com espaço para processar informação e emoções.
As técnicas cognitivas e comportamentais devem ser visuais, práticas e orientadas para objetivos concretos, como gerir a energia, o sono ou o stress sensorial.
A aceitação e o autoconhecimento devem ser centrais: mais do que “corrigir comportamentos”, o foco deve estar em validar a identidade autista e em ajudar a viver de forma mais coerente com os próprios limites e valores.
O corpo também precisa de atenção. Exercícios de respiração, consciência corporal ou relaxamento sensorial podem ajudar a reduzir a ansiedade acumulada.
É fundamental que os psicólogos e outros terapeutas recebam formação específica sobre autismo na idade adulta e no envelhecimento, algo ainda raro nas universidades portuguesas. O contacto com formadores autistas e a supervisão clínica por profissionais com experiência nesta área são passos essenciais.
Histórias que iluminam
Várias histórias ilustram a importância desta mudança de olhar:
Ana, 66 anos, diagnosticada aos 63, diz que “finalmente percebeu que não era preguiçosa nem demasiado sensível, apenas precisava de menos ruído e mais clareza”.
Joaquim, 72 anos, relatou que no hospital “ninguém explicava o que iam fazer, mexiam em mim sem avisar. Só quando a enfermeira me falou com calma e escreveu o que ia acontecer é que consegui ficar tranquilo”.
Helena, 58 anos, descreve a terapia como “um processo de reencontro”, onde aprendeu a aceitar a sua forma de ser em vez de tentar mascará-la.
Estas vozes recordam-nos que cada adaptação pequena pode ter um impacto enorme na dignidade e bem-estar das pessoas autistas mais velhas.
Formação, investigação e políticas públicas
Portugal ainda está a dar os primeiros passos na investigação sobre autismo no adulto e praticamente não existem estudos centrados em pessoas autistas mais velhas. Esta ausência tem consequências: sem dados, não há políticas; sem políticas, não há recursos; e sem recursos, o ciclo de invisibilidade repete-se.
É urgente investir em formação transversal para psicólogos, médicos, enfermeiros, assistentes sociais e cuidadores formais. E é igualmente importante incluir pessoas autistas na conceção dessas formações e serviços, não como “consultores simbólicos”, mas como coautores do conhecimento.
Do mesmo modo, as políticas públicas de envelhecimento ativo e de saúde mental devem incluir o autismo como uma dimensão específica de diversidade humana. Um país que quer envelhecer com dignidade não pode deixar para trás quem sempre esteve invisível.
Conclusão: dar voz a quem envelhece com o autismo
O autismo nas pessoas adultas mais velhas é uma realidade silenciosa. Falar dela é um ato de reconhecimento e justiça. Estas pessoas viveram décadas a tentar adaptar-se a um mundo que não as compreendia. Agora é a nossa vez, enquanto profissionais, investigadores e cidadãos, de nos adaptarmos a elas.
Compreender e acolher o autismo na idade adulta e no envelhecimento é muito mais do que uma questão clínica. É uma questão de humanidade.




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