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As muitas vozes do autismo: percursos, genes e singularidades


O autismo, tradicionalmente concebido como uma entidade diagnóstica única, tem vindo a revelar-se, à luz da investigação contemporânea, um conjunto plural de trajetórias humanas e biológicas. A diversidade de perfis observada nas pessoas com diagnóstico de autismo levanta uma questão fundamental: estaremos perante uma só condição com múltiplas expressões, ou diante de fenómenos distintos que partilham uma superfície clínica comum?


Durante décadas, a ciência procurou no genoma a chave que explicasse o enigma do autismo. A promessa era clara: encontrar o gene, ou o conjunto de genes, que estivesse na origem da condição. Contudo, à medida que a investigação genética se aprofundou, essa esperança simplista foi sendo substituída por uma consciência mais complexa. Não existe um gene do autismo. Existe, antes, uma constelação de variações genéticas, interações poligénicas e influências epigenéticas que, combinadas de formas únicas, moldam diferentes trajetórias de desenvolvimento. A genética não revelou uma explicação única, mas sim um espelho dessa diversidade que observamos nas vidas das pessoas autistas.


Desde as primeiras descrições clínicas na década de 1940, o autismo foi considerado uma condição que emerge na primeira infância. Os manuais diagnósticos e a literatura científica enfatizavam o início precoce dos sintomas, muitas vezes antes dos três anos. No entanto, nas últimas décadas, tornou-se evidente que um número crescente de pessoas autistas é diagnosticado apenas mais tarde na infância, na adolescência ou mesmo na idade adulta. Essa mudança reflete, em parte, uma evolução na compreensão do autismo, mas também a consciência de que os sinais comportamentais podem não se manifestar claramente nos primeiros anos de vida. Há crianças que inicialmente não cumprem critérios de diagnóstico, mas que mais tarde, com o aumento das exigências sociais e cognitivas, passam a evidenciar diferenças que tornam o diagnóstico possível e clinicamente relevante.


Os fatores que determinam a idade em que o diagnóstico é obtido são complexos e multifatoriais. Vários elementos sociais, demográficos e clínicos foram associados ao momento do diagnóstico. No entanto, estudos mostram que esses fatores explicam apenas uma fração modesta da variação observada, geralmente menos de 15%. Esta constatação indica que outros elementos, ainda pouco explorados, devem contribuir para essa diferença temporal. Um desses fatores é, muito provavelmente, a própria genética. Embora a hereditariedade do autismo seja elevada, o papel da genética na idade do diagnóstico foi, até muito recentemente, um território praticamente inexplorado.


Dois modelos teóricos ajudam a compreender de que forma a genética pode influenciar o tempo de diagnóstico. O primeiro, o modelo unitário, propõe que o autismo tenha uma única etiologia poligénica. Neste modelo, as mesmas variantes genéticas estariam na base de todas as manifestações do autismo, independentemente da idade em que são reconhecidas. Assim, as pessoas diagnosticadas mais tarde teriam um perfil genético semelhante ao das diagnosticadas cedo, mas com uma expressão clínica mais subtil nos primeiros anos, talvez devido a uma predisposição genética menos intensa. À medida que envelhecem, fatores ambientais e sociais poderiam acentuar as diferenças comportamentais, levando-as a ultrapassar o limiar clínico necessário para o diagnóstico.


O segundo modelo, designado modelo de desenvolvimento, sugere uma explicação mais diferenciada. Neste caso, o autismo diagnosticado precocemente e o diagnosticado tardiamente teriam trajetórias de desenvolvimento e bases genéticas distintas. Este modelo está em consonância com as evidências que apontam para variações nas influências genéticas ao longo do desenvolvimento humano. Assim, diferentes conjuntos de variantes genéticas poderiam estar associados a diferentes momentos de manifestação do autismo. Tal modelo não exclui a influência do ambiente, mas reconhece que o genoma pode estruturar vias desenvolvimentais próprias, cada uma com o seu ritmo e expressão particular.


Esta perspetiva é particularmente poderosa, pois liga o percurso biográfico de cada pessoa autista à arquitetura invisível do seu genoma. O autismo que se manifesta cedo poderá refletir alterações genéticas que afetam processos fundamentais do neurodesenvolvimento, enquanto o autismo de manifestação tardia poderá estar mais associado a genes implicados em funções cognitivas superiores, regulação emocional e adaptação social. Desta forma, a biologia não apenas acompanha o desenvolvimento, mas participa na orquestração do seu ritmo.


Contudo, é crucial sublinhar que esta compreensão genética não deve ser tomada como um destino fixo. Os genes delineiam possibilidades, não determinismos. O modo como essas predisposições se tornam experiência depende das relações, dos contextos e das oportunidades. O autismo é tanto uma realidade biológica como uma narrativa de desenvolvimento, tecida pela interação constante entre o que herdamos e o que vivemos. Por isso, compreender as bases genéticas do autismo não significa reduzir as pessoas autistas a um código molecular, mas reconhecer que cada trajetória é o resultado de um encontro singular entre herança e existência.


O desafio contemporâneo reside em integrar estas descobertas genéticas e desenvolvimentais com uma visão ética e humanizada. A investigação mostra-nos que o autismo é um fenómeno plural e que a idade do diagnóstico é mais do que uma questão administrativa: é um reflexo da complexidade entre biologia e experiência. O futuro da compreensão e da intervenção no autismo dependerá da capacidade de unir o rigor científico à escuta das histórias individuais, reconhecendo que cada combinação genética corresponde a uma biografia irrepetível.


O autismo, visto assim, não é uma condição única nem uma soma de sintomas. É um conjunto de percursos humanos que partilham o desafio da diferença e a riqueza da complexidade. A sua compreensão plena exigirá abandonar a ideia de uma narrativa linear e abraçar a multiplicidade das histórias que o compõem. Cada uma dessas histórias, escrita em genes, experiências e contextos, amplia o significado de ser humano e desafia a ciência e a clínica a acompanharem essa diversidade com rigor, sensibilidade e humildade. Reconhecer que há muitas vozes no autismo, e que cada uma ecoa uma configuração biológica e emocional distinta, é compreender que a diversidade não é fragmentação, mas expressão da harmonia complexa da vida.


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