Anjos do tempo da pedra
- pedrorodrigues

- 22 de jul.
- 5 min de leitura
O Autismo n'Adulto associa-se às inúmeras vozes que se têm insurgido face ao que é considerado um retrocesso na disciplina de Educação para a Cidadania face ao tema da saúde reprodutiva e sexualidade. Assim como aproveita, mais uma vez, para reforçar a importância de que estas e outras temáticas fundamentais do desenvolvimento possam respeitar as diferenças na expressão da sexualidade das pessoas com deficiência em geral, e nas pessoas autistas em particular. Estes programas necessitam de reflectir a realidade da heterogeneidade e variabilidade existente e tornar-se inclusivo destas formas de ser.
Os corpos que falam em silêncio. Saúde reprodutiva, sexualidade e o direito à diferença no autismo
Há corpos que falam antes de aprenderem palavras. Corpos que sentem o mundo como uma torrente de estímulos brutos, que dançam ao som de frequências que outros não ouvem. Nesses corpos habita a experiência autista, uma forma singular e muitas vezes silenciada de estar no mundo. E, como todos os corpos, também estes têm desejo, afecto, pulsação, pele, identidade. Também estes corpos merecem nomear os seus limites, escolher os seus amores, proteger-se dos perigos, viver a liberdade da sua expressão mais íntima: a sexualidade.
Mas o mundo tem sido injusto. Tem falado da sexualidade como se ela fosse uma concessão para os que cumprem normas. Como se a intimidade fosse privilégio de poucos. Como se a deficiência, e sobretudo o autismo, fossem sinónimo de assexualidade ou, pior, de infantilização perpétua.
Hoje, neste texto, inscrevemos outra história. A de que a saúde reprodutiva e sexual das pessoas autistas é um direito. Um território a ser descolonizado da ignorância e da omissão. E um campo urgente de acção ética, clínica e política.
Do nascimento à velhice: a sexualidade como travessia
Desde cedo, os corpos autistas descobrem o mundo com outros mapas. A infância é marcada por uma sensorialidade intensa, o toque pode ser abrigo ou ameaça, e por uma linguagem afectiva muitas vezes não verbal. Se não formos cuidadosos, é aqui que começa a exclusão: quando não falamos com estas crianças sobre o seu corpo, os seus limites, o seu direito ao não. Quando se presume que não compreenderão. Quando se omite que também amam.
Na adolescência, esse corpo transforma-se. As mudanças hormonais não esperam por manuais. O desejo emerge, mas os códigos sociais permanecem enigmáticos. A ausência de educação sexual adaptada lança muitos jovens autistas num mar de mal-entendidos, de vulnerabilidades, de solidões. E quantas vezes são culpabilizados por comportamentos que poderiam ter sido prevenidos com orientação sensível?
A idade adulta traz outros desafios: como construir uma relação? Como aceder à contracepção? Como ser mãe ou pai sendo autista, quando o sistema médico ainda duvida da sua competência? E na velhice, essa última fronteira do tabu, quem fala da sexualidade das pessoas sénior com deficiência? Quem lhes pergunta sobre o desejo, a intimidade, o toque ainda possível?
Uma escola que ensine a liberdade
A educação sexual é um acto de justiça. Não é moralismo. Não é um luxo. É o saber que protege, que emancipa, que previne o abuso, que acolhe a diversidade, que abre espaço ao consentimento, ao prazer, à dignidade.
Mas para que a escola cumpra essa promessa, é preciso que fale todas as línguas, inclusive a linguagem visual, concreta e literal com que muitos autistas compreendem melhor o mundo. É preciso que os currículos de Cidadania deixem de ser fórmulas genéricas e se tornem planos vivos, inclusivos, progressivos, atentos à diferença.
Um plano curricular digno deve:
Introduzir o corpo e o toque saudável logo no pré-escolar.
Ensinar consentimento e diversidade sexual no ensino básico.
Falar de prevenção, género, relações online e parentalidade no ensino secundário.
Incluir pessoas com deficiência nos materiais, nas vozes e nas decisões.
As orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), da UNFPA e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência são claras: a sexualidade é um direito humano e deve ser ensinada a todas as pessoas, com adaptações quando necessário, mas nunca com exclusão. A educação sexual para pessoas com deficiência não é diferente na sua essência, é diferente no método, no ritmo, na escuta.
Identidade, desejo e protecção
Não se pode viver uma sexualidade livre se não se reconhecer a identidade que a habita. E entre as pessoas autistas, há uma maior expressão de diversidade de género, de experiências não binárias, de orientações afectivas plurais. Recusar essa realidade é negar-lhes o direito ao espelho.
Mas é também preciso reconhecer o outro lado: a brutal estatística da violência. As raparigas e mulheres autistas estão entre os grupos mais vulneráveis ao abuso sexual e físico. Estudos indicam que este risco pode ser até dez vezes superior ao da população em geral.
A omissão mata. O silêncio mata. A falta de educação sexual adaptada não é neutra, é cúmplice do abuso. Uma criança que não conhece o seu corpo, que não sabe que pode dizer não, que não foi ensinada a nomear a violência, é uma criança em risco.
A informação, quando transmitida com respeito, protege. O conhecimento é escudo. E o afecto é bússola.
Políticas que avancem, nunca recuem
As políticas públicas têm o dever de proteger, capacitar, legislar, orçamentar. Qualquer recuo nesta área é um atentado ao direito à integridade das pessoas com deficiência.
As leis devem incluir:
Formação obrigatória para docentes e profissionais de saúde em educação sexual inclusiva.
Protocolos claros de protecção e denúncia para pessoas vulneráveis.
Financiamento para materiais pedagógicos acessíveis.
Monitorização de boas práticas nas escolas e serviços.
A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD) exige que os Estados assegurem serviços de saúde sexual e reprodutiva em condições de igualdade. Mas a letra da lei só se cumpre com vontade política, acção contínua e escuta activa das comunidades afectadas.
Quando quem vive a diferença toma a palavra
As pessoas autistas e com deficiência não são objecto de intervenção. São sujeitos de direito. Têm voz, desejo, pensamento crítico. E devem estar no centro do processo.
Advogar pelos próprios direitos é também um acto de cidadania. Cabe ao Estado e à sociedade criar condições para essa participação. E cabe aos próprios desenvolver redes, tomar espaços, exigir representação.
Ao lado delas devem estar pais, cuidadores e professores — não como guardiões da norma, mas como facilitadores da expressão e da autonomia. Devem ser os primeiros a quebrar os tabus, a acolher as perguntas, a legitimar a experiência do outro. A sexualidade é uma dimensão que se cultiva em casa, nas conversas de fim de dia, nos gestos de escuta sem julgamento.
O que fica, depois de tudo
Fica a urgência de dizer que as pessoas autistas não precisam de ser “curadas” da sua forma de amar ou sentir. Precisam de ferramentas para viver essa forma com segurança, dignidade e plenitude.
Fica o imperativo de educar desde cedo, com clareza, com afecto, com adaptação, mas sem censura.
Fica o compromisso de legislar com coragem, formar com rigor, escutar com humildade.
E fica a convicção de que, quando abrimos espaço para todas as formas de expressão corporal, afectiva e sexual, não estamos apenas a proteger alguém, estamos a transformar a sociedade toda. Tornamo-la mais justa. Mais bela. Mais humana.
Referências essenciais
WHO & UNFPA. Promoting sexual and reproductive health for persons with disabilities (2009)
United Nations. Convention on the Rights of Persons with Disabilities (CRPD)
WHO Europe. Action Plan for Sexual and Reproductive Health 2022–2030
Brown-Lavoie et al. (2014). Sexual knowledge and abuse experiences of adults with autism
McDaniels & Fleming (2016). Reproductive rights and access to services in women with disabilities
Saxe et al. (2023). Autism, Gender Diversity and Sexual Health: A Clinical Overview
No caso de querer participar na consulta pública sobre o documento para a Educação para a Cidadania poderá fazê-lo a partir deste link.




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