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Foto do escritorpedrorodrigues

A retratista

Eu nunca me lembro de andar com os pés sujos, diz Andreia (nome fictício). Isto apesar da minha mãe dizê-lo repetidamente, acrescenta. A certa altura comecei a tirar fotografias das coisas, e principalmente de mim própria!, refere. Quando um dia um psicólogo me perguntou quem eu era, respondi-lhe que deveria ser aquilo que os outros dizem. Isto ainda que na grande maioria das vezes aquilo que me diziam não agradasse. Mas a contrapartida seria eu não ser ninguém porque eu própria pouco ou nada me lembro de mim!, concluiu. Apesar das dificuldades respeitantes à memória não ser um aspecto central no diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, é uma queixa comum de ouvirmos. Ainda que muitas pessoas pensem que todas as pessoas autistas são capazes de memorizar grandes quantidades de informação. É verdade que há algumas com essa capacidade, mas não constituem o global das pessoas autistas. Em particular há uma memória que costuma apresentar maior compromisso - a memória autobiográfica. Ou seja, a lembrança de eventos vividos pessoalmente e informação relacionadas consigo própria. Curioso dizeres-me isso, refere Andreia. Essas memórias não as tenho, sabes!, continua. Quando tu me dizes que essas memórias são relativas a acontecimentos únicos. Acontecimentos com duração não superior a um dia, agora percebo porque é que não os tenho, refere. É porque toda a minha vida é só um acontecimento. Chama-lhe sofrimento se quiseres, diz-me concluindo a sua reflexão. Esta questão da memória autobiográfica e da forma como ela se apresenta no Espectro do Autismo não é de agora que é procurada compreender. Na verdade já Kanner e Asperger reportavam observações clinicas com esse mesmo apontamento. Por exemplo, Kanner em 1943, reportou que crianças autistas apresentavam maior número de falhas em conseguir recordar voluntariamente os eventos decorridos ao longo do seu dia. Por sua vez, Asperger reportou situações de crianças que se lembravam de eventos, geralmente com detalhes mínimos, mas que pareciam esquecer determinadas informações ou até mesmo fornecer detalhes que pareciam tornar o seu relato mais confuso ou até mesmo pouco coerente. Alguns dos leitores poderão estar a pensar no que é que a memória autobiográfica pode implicar negativamente na vida das pessoas autistas que outras das suas características nucleares não causem? Na verdade, muitos dos comportamentos observados nas pessoas autistas e que leva a que sejam caracterizados como comportamentos com um ajustamento atípico aos contextos sociais. Assim como, maiores problemas para fazer ou manter relações de amizade ou até mesmo iniciar ou manter uma conversa. Muitas dessas situações estão correlacionadas com algum prejuízo na memória autobiográfica das pessoas. Nas pessoas com um desenvolvimento típico, a identidade social é construída por intermédio das interacç~eos sociais de validação e consensuais. Como tal, a comunicação social e as dificuldades de adaptação que caracterizam as pessoas autistas podem, como tal, interferir com o desenvolvimento de uma identidade social por intermédio da interacção social. Até porque a forma como estas são realizadas podem atrapalhar a partilha de experiências com as pessoas dos diferentes grupos a que pertencem. A memória autobiográfica inclui a memória de longo prazo relativamente ao conhecimento pessoal em geral ou relacionado com factos, também designada de memória autobiográfica semântica. Mas também de determinados eventos específicos e relacionados com a própria vida das pessoas, também designada de memória autobiográfica episódica. Esta componente episódica permite que as pessoas se lembrem de experiências passadas, além de lhes permitir imaginar possíveis experiências futuras. Sendo que ambas envolvem aquilo que se designa de consciência autonoética, ou seja, a capacidade de projectar estados do Seu no tempo. As informações autobiográficas sobre o passado e a capacidade de projecção no futuro permitem que as pessoas possam manter a sensação de ser uma pessoa coerente durante a sua vida, além de actualizar aquilo que é a sua própria identidade. O meu primeiro dia na Universidade!? É isso que queres que eu te fale?, pergunta-me Andreia. Posso dizer-te que foi no dia 18 de setembro de 1995. Foi uma segunda-feira. Não fui de manhã, isso eu sei. As manhãs sempre foram mais difíceis para mim. Para isso não preciso de uma memória. Basta-me acordar no dia seguinte e percebo que as manhãs continuam a ser difíceis para mim, compreendes?, diz-me. Recordo-me de determinadas aulas. Se quiseres posso falar-te disso. Eram sempre tão iguais, percebes? Mas quando me perguntas como foi a Universidade não te consigo responder. Não dessa forma, não sei. É algo que não consigo alcançar. Nem sei sequer se existe!, continua. Talvez te possa dizer que fui uma nódoa na Universidade. Sim, talvez te possa dizer isso, refere. Na verdade é aquilo que mais frequentemente recordo, até porque foi isso que mais vezes sinto que me foi sendo devolvido. E também por isso sempre me disseram que eu era deprimida, acrescenta. Também te posso dizer que além de deprimida, também sou bipolar, ou anti-social, e poderia continuar!, refere com um certo tom de sarcasmo. Disseram-me muitas mais vezes tudo isso do que outra coisa qualquer, compreendes? Essa é a minha memória! Depois de me ter procurado suicidar e não ter conseguido, pensei que chegava. E foi então que comecei a tirar fotografias de mim própria e das coisas. E quando estou em casa e quero pensar em mim própria, olho para as fotos. E de alguma maneira sinto que algumas delas passam a ser memórias. Nem que seja pela quantidade de vezes que eu as revejo. Ao menos as fotos não me gritam ou humilham. E na verdade continuam a ser a minha visão das coisas e de mim mesma, percebes? Tal como em qualquer um de nós. No fundo é isso que os nossos olhos fazem. Para mim os olhos fotografam para que possamos proceder à sua análise. Podes dizer que eu uso um processo diferente, eu não me importo. Na verdade fui-me tornando uma retratista. E isso já é saber alguma coisa acerca de mim própria. É uma memória não é?, pergunta-me antes de terminarmos.


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