A minha cara metade
- pedrorodrigues

- 24 de jul.
- 8 min de leitura
O compasso 4/4, também chamado de compasso quaternário, simples ou compasso comum, é um tipo de compasso musical onde cada compasso tem quatro tempos, e cada tempo equivale a uma seminima, ou quarto de semibreve. A acentuação rítmica típica num compasso 4/4 é forte-fraco-médio-fraco, onde o primeiro tempo é o mais forte, o terceiro tem intensidade intermédia, e o segundo e quarto são fracos.
Não vos irei baralhar mais com estas coisas de teoria musical. Apenas para vos dizer que este compasso, apesar de ser aquele mais comumente usado, ainda assim, é aquele que faz parte de grande parte das musicas. Algo que me faz pensar na história e nas experiências de vida das mulheres autistas ao longo do ciclo de vida. Ficaram ainda mais baralhados? Deixem-se levar pelo compasso das quatro histórias e já irão perceber.
Hoje, mais do que nunca, se fala sobre autismo e pessoas autistas. Inclusive, cada vez mais assistimos às pessoas autistas, elas próprias a falar sobre autismo, o seu e o autismo de uma maneira geral. Mas apesar de todo este desenvolvimento, cientifico e social, continuamos a assistir ao enorme desconhecimento sobre o autismo. Confuso? Não é assim tanto! E normalmente ele acontece porque se parte de um principio generalista que lemos os critérios de diagnóstico de uma perturbação do espectro do autismo num manual de diagnóstico e já sabemos o que é o autismo. Ou vimos um filme, ou assistimos a uma ou duas séries! Ou temos visto inúmeros videos, uns mais breves do que outros nas redes sociais sobre o tema.
Mas quando se diz que a perturbação do espectro do autismo é uma perturbação do neurodesenvolvimento com uma grande heterogeneidade e variabilidade, inter e intra pessoal. Não é apenas uma frase para ficar bonita e encher um parágrafo num artigo cientifico. Uma pessoa autista observada em criança apresenta ínumeras caracteristicas diferentes e outras tantas semelhantes, mas ainda assim, expressas de forma única, comparativamente a outras crianças com o mesmo diagnóstico. E esta criança autista não será a mesma enquanto adolescente, adulta ou sénior, não obstante continuar a ter o mesmo diagnóstico.
Mas hoje quero falar sobre o autismo no feminino. E de como é que a vida das raparigas e mulheres autistas pode ser tão diferente consoante o seu percurso de vida. Como será a vida de uma mulher autista se diagnosticada precocemente em criança? E se ao invés disso apenas for diagnosticada em adulta? Ou nunca for diagnosticada! Ou quando o for ser com outros diagnósticos, como por exemplo, perturbação bipolar, perturbação da personalidade borderline, depressão major ou distimia, etc?
Vamos sabendo cada vez mais sobre o autismo. Pelo menos numas áreas e numas etapas de vida mais do que em outras. Mas sabemos muito pouco sobre como é o percurso de vida das pessoas autistas. Como é que é o percurso de vida de uma pessoa autista quando beneficia de intervenção precoce? Melhora sempre? E se sim, porque não se diagnostica cada vez mais precocemente? E mesmo quando diagnosticada precocemente e com intervenção precoce adequada não se verifica esta mesma melhoria, o que justifica que não ocorra? E quando há uma regressão? Como se vê, são mais as perguntas.
No início, é apenas uma criança, quieta ou turbulenta, tímida ou expansiva, mas sempre um pouco fora do compasso esperado.
Chamam-lhe “sensível” ou “difícil”, dependendo do tom da voz de quem observa. Mas quando alguém a vê realmente, vê com olhos de escuta e não com pressa de diagnóstico, então nasce outra história.
Essa menina, diagnosticada cedo, cresce entre mapas e margens. Há oficinas sociais para treinar os gestos, mediadores a decifrar os ruídos, professores que a aprendem como quem aprende um idioma raro. Com sorte, e políticas públicas, encontra terapeutas que não a querem mudar, mas compreender. E há momentos em que o mundo se inclina um pouco, só um pouco, para que ela o possa habitar de pé. Mas mesmo assim, mesmo assim… a adolescência chega como uma trovoada. O corpo cresce antes que o entendimento acompanhe. A linguagem da amizade torna-se críptica, e a da intimidade, um mapa com as linhas trocadas. A sexualidade aparece, sem manual. E mesmo com diagnóstico, mesmo com nome, a solidão permanece como um eco.
Noutra casa, noutra linha de tempo, há uma mulher que só foi nomeada tarde. Cresceu confundida. Achava que toda a gente usava máscaras, como ela. Que toda a gente ensaiava as falas antes de cada encontro social, que os risos vinham sempre com atraso, que o cansaço depois de um jantar era universal. Mas ninguém parecia tropeçar tanto na vida como ela. Foi considerada estranha, depois inteligente, depois problemática. Depois genial, depois instável. Depois… cansada. Muito antes de entender que existia uma palavra que fazia sentido — autista — já lhe tinham chamado tantas outras. O diagnóstico, quando veio, foi um alívio que doeu. Como quem encontra finalmente uma casa, mas percebe quantos anos viveu na rua sem saber que havia abrigo.
Há ainda a mulher que nunca foi diagnosticada. A que cresceu com uma sensação difusa de inadequação. Desenvolveu um olhar clínico sobre os outros, para poder imitá-los. Era boa aluna, até que deixou de o ser. Era doce, até que se tornou sarcástica. Era esforçada, até que o esforço se tornou exaustão crónica. Nunca percebeu bem por que motivo estar com pessoas era tão cansativo. Por que motivo os sons do supermercado doíam. Por que motivo precisava de tanto tempo sozinha, e mesmo assim sentia-se sempre deslocada. Teve amigos que a abandonaram por “drama”. Teve relações que ruíram sem aviso, como se a presença dela fosse um desequilíbrio invisível. E teve fases de intensa tristeza, que os médicos chamaram “distimia”, como se o sofrimento tivesse tom. No fundo, só queria que alguém lhe dissesse: “Eu vejo-te. E tu és coerente com aquilo que sentes.”
E por fim, há aquela mulher que foi nomeada muitas vezes, mas nunca pelo nome certo. Foi “borderline”, porque amava demais e sofria a seguir. Foi “bipolar”, porque os seus estados de sobrecarga sensorial pareciam euforias ou colapsos. Foi “depressiva”, porque o mundo era pesado demais e ela nunca conseguia explicar porquê. Foi “ansiosa”, porque reagia ao imprevisível com estratégias de sobrevivência. E foi medicada, e foi hospitalizada, e foi descartada. E tudo isto sem que ninguém perguntasse como era, para ela, viver com o volume do mundo sempre no máximo. E quando um dia ouviu a palavra “autismo”, não como insulto, mas como possibilidade, foi como se todas as gavetas onde a tinham arrumado explodissem ao mesmo tempo.
Cada uma destas mulheres é um espelho partido da mesma biografia. Porque o autismo nas mulheres, tantas vezes, não se escreve com traços vincados. Escreve-se nas entrelinhas. Nos silêncios. Nos mal-entendidos. Na sobrevivência por camuflagem. No preço que se paga por se adaptar.
O ciclo de vida de uma mulher autista não é uma linha recta. É uma sucessão de reinvenções forçadas. Mas quando, finalmente, se reconhece, quando lhe é dado o nome certo, algo se alinha. Não porque se cure. Mas porque se compreende. E há uma dignidade secreta nisso. A dignidade de se existir tal como se é, mesmo num mundo que nunca aprendeu a escutar em profundidade.
Agora compreendeu o compasso 4/4? E se eu lhe disser que o mesmo compasso pode soar diferente?
Inês tinha cinco anos quando os pais, alertados por uma educadora atenta, procuraram ajuda. Ela não brincava como as outras crianças. Observava. Catalogava. Evitava o barulho dos recreios, tapando os ouvidos com delicadeza quase coreográfica. O diagnóstico de autismo veio envolto em palavras técnicas, mas os pais ouviram o essencial: ela precisava de tempo, estrutura e alguém que escutasse o que não dizia com a boca. Inês cresceu entre psicólogas, planos individuais e livros ilustrados sobre como ler expressões faciais. Nunca gostou de metáforas. Preferia verdades nuas, mesmo as duras. A adolescência foi uma travessia. Enquanto os colegas mergulhavam em grupos e rituais sociais, Inês estudava padrões climáticos e pássaros migratórios. Sentia-se só, mas não incompleta. Na universidade, encontrou outras formas de afinidade, mais calmas, mais directas. Apaixonou-se por uma colega de engenharia aeroespacial que falava pouco e olhava devagar. Aos vinte e sete, trabalhava num observatório astronómico. Dizia que os planetas lhe faziam mais sentido do que os aniversários, mas que gostava de saber que era possível existir sem ter de fingir.
Sílvia foi sempre chamada de “peculiar”. Aos seis, tinha ataques de raiva quando alguém lhe tocava sem avisar. Aos doze, fazia listas mentais de tudo o que poderia correr mal antes de sair de casa. Aos dezassete, fingia ser extrovertida para sobreviver ao liceu. Decorava padrões sociais como quem decora danças, sem saber dançar. Aos vinte e cinco, foi diagnosticada com ansiedade generalizada. Aos vinte e nove, depressão resistente. Aos trinta e três, burnout crónico. Foi numa formação online sobre mulheres autistas que tudo se encaixou. Um vídeo, uma psicóloga, uma frase simples: “Às vezes, as mulheres autistas aprendem a sobreviver tão bem que ninguém percebe que estão a sofrer.” Marcou consulta. Foi ouvida. E diagnosticada, finalmente. Chorou. Não pela tristeza — mas por ter uma palavra que explicasse tantos anos de cansaço. Hoje, aos trinta e oito, está a reaprender tudo: o direito ao silêncio, a escolha das companhias, a liberdade de dizer “não consigo agora”. Sílvia descobriu-se tarde. Mas não tarde demais.
Teresa nasceu em 1962. Cresceu numa casa onde as emoções eram engolidas e o barulho era pecado. Sempre se sentiu diferente, mas nunca soube explicar como. Na escola, era calada e observadora. Em casa, acumulava rotinas invisíveis, contar os degraus da escada, alinhar os pratos por cor, repetir mentalmente frases antes de dormir. A vida foi uma sucessão de adaptações. Um casamento breve, dois filhos, vários empregos que largou sem conseguir explicar o motivo. Os médicos falavam em nervos, stress, tristeza crónica. Ela acreditava que o problema era ser ela. Na velhice, aprendeu a viver devagar. Caminhava sozinha pelos parques. Anotava padrões de voo das aves. Evitava supermercados. Um dia, a neta trouxe-lhe um livro: “Autismo e Mulheres Invisíveis”. Teresa leu numa noite. Fechou o livro e olhou-se ao espelho. Não disse nada a ninguém. Não tinham ninguém para dizer. Mas, pela primeira vez, sentiu que o enigma tinha nome. E que talvez nunca tivesse sido louca. Só não compreendida.
Marta tinha um brilho errante no olhar. Aos catorze, disseram que era instável. Aos dezassete, que talvez fosse bipolar. Aos vinte, diagnosticaram-na com borderline. Tomou vários medicamentos. Frequentou terapias. Nada parecia durar. Os relacionamentos eram intensos e curtos. As amizades, frágeis. Sentia tudo com uma intensidade que a queimava por dentro. E, entre crises, isolava-se durante dias, embalada pelas suas obsessões: colecções de pedras, listas de bandas sonoras, filmes em looping. Aos vinte e oito, conheceu uma psicóloga nova. Durante a terceira sessão, ouviu uma pergunta diferente: Alguma vez alguém considerou que poderias estar no espectro do autismo? Riu, desconfiada. Mas a pergunta ficou. Fez avaliação. Reviu a sua vida como quem rebobina um filme mal legendado. O diagnóstico de autismo veio como um sussurro, não como uma sentença. Marta chorou. De alívio. De luto. De reconhecimento. Revisitou todos os diagnósticos anteriores como rótulos colados por cima de algo mais profundo. Hoje, aos trinta e três, vive com menos ruído interno. Ainda sente demais. Mas agora sabe que isso não é falha. É linguagem.
E agora, compreendeu? Não se aflija se não o compreendeu. Até porque é um compasso desaiante de aprender, apesar de ser comumente usado. É mais importante poder escutar, o compasso, mas também aquilo que as raparigas e as mulheres que suspeitam estar dentro do espectro do autismo têm para dizer de si. E quando der conta irá aprender que o mesmo compasso pode produzir um, outro, outro e outro infinitésimo som diferente.




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