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A filosofia do autismo

É urgente uma filosofia do autismo!


Quantas vezes já vi um slide numa apresentação cientifica com a designação etimológica da palavra autismo? Provavelmente, demasiadas! Eu próprio já terei feito uma ou outra vez o mesmo. Tendemos a repetir, a replicar o que vemos e ouvimos. Pouco frequentemente nos questionamos. Sobre o que está a ser dito ou mostrado, mas também do seu significado e impacto em nós.


Autismo, com origem na palavra grega autos, que significa self, próprio, si mesmo, dirigido a partir de dentro. Ainda que ao escavarmos mais na abordagem etimológica da palavra grega vamos encontrar a hipotese da mesma ser escrita com h. Ou seja, hautism em vez de autism. E se for com h, hautism, significa acção de reflexão.


Mas parece que esta acção de reflexão foi decaindo em muitos de nós, pessoas não autistas e pessoas autistas. Vivemos assoberbados, uns e outros pela incompreensibilidade do Outro. As pessoas autistas pela forma como as pessoas não autistas tomam decisões, sendo que várias delas impactam muito negativamente na sua vida. E as pessoas não autistas a olharem e pensarem o Outro autista como um outro incompreensivel. Perguntem-se a vocês próprios, até que ponto é que o que entendemos como falta de empatia ou de teoria da mente não será uma projeção das nossas próprias limitações empáticas face à diferença? É certamente uma questão dificil, seja de colocar, mas também de a procurar responder. E na imediatez do quotidiano aceitamos a incompreensibilidade do Outro autista como uma explicação em si mesmo. E como lhe foi atribuído uma designação nosológica de um diagnóstico, o assunto ficou encerrado, certo?


Mas não, não ficou encerrado. Até porque hoje, mais do que nunca, pessoas autistas e não autistas, procuram reflectir além das designações da incompreensibilidade e da atribuição de um mero diagnóstico ou designação de funcionamento deficitário para travar o questionamento.


O Miguel (nome fictício) tem uma percepção invulgarmente detalhada do ambiente. Nota variações mínimas de luz, padrões geométricos em sombras e ruídos subtis que escapam à maioria das pessoas. Quando era criança, era considerado distraído por não olhar as pessoas nos olhos ou não responder ao seu nome. No entanto, demonstrava um fascínio extraordinário por sistemas complexos, como mapas de transportes urbanos ou circuitos eléctricos e descreve frequentemente sentir-se fundido com os sons e os objetos à sua volta.


Muitos pensarão, decididamente a breve descrição do Miguel mostra uma pessoa autista. Mas o convite é de não ficarmos ofuscados com esse conhecimento que muitos de nós usa para escudar muita da sua incompreensibilidade face ao demais observado. O Miguel sempre foi mais do que o seu diagnóstico de autismo. Até porque esta breve descrição mostra que a percepção autista não é apenas um défice sensorial. Também é, e no caso do Miguel ainda mais, uma forma de relação com o Mundo. O corpo, tal como em Merleau-Ponty, o corpo não é uma coisa, mas sim uma forma de presença no Mundo. E que presença é essa a do Miguel e das 78 milhões de pessoas autistas em todo o mundo? A filosofia do autismo convida-nos a considerar que o Miguel não é um outro menos presente, mas sim presentemente diferente, com uma lógica sensível própria.


Ou a Carla (nome fictício), que é diagnosticada com perturbação do espectro do atuismo desde os 3 anos. Nunca desenvolveu fala funcional, mas escreve fluentemente desde os 15 anos. Quando comunica por e-mail, expressa ideias complexas sobre arte, tempo e espiritualidade. No entanto, nas consultas clínicas, frequentemente os profissionais falam sobre ela com familiares, assumindo que a ausência de fala implica ausência de entendimento.


A Carla é duplamente não verbal. Ambas são-lhe impostas. Uma pela sua neurologia. A outra pela Sociedade. A história de Carla questiona a epistemologia dominante, que confunde verbalização com consciência ou competência. A linguagem da deficiência pode obscurecer formas não reconhecidas de conhecimento. A filosofia do autismo propõe uma ética da escuta radical — dar lugar ao saber vivido das pessoas autistas, mesmo quando a sua expressão desafia as normas habituais. E esta fiilosofia pode e deve ser construida e vivida no espaço psicoterapêutico, espaço onde o saber vivido e experencial das pessoas autistas pode ser olhado, escutado, trabalhado, validado. Cada encontro clínico torna-se um convite a despatologizar a diferença e a reimaginar os modos de escuta, cuidado e reconhecimento.


Ao abordarmos o autismo a partir da filosofia, questionamos não só o que é o autismo, mas também o que somos nós enquanto clínicos, terapeutas e seres humanos. O desafio não é curar o autismo, mas curar a forma como a normalidade se impõe como tirania. A psicologia contemporânea, ao lidar com o autismo, tem frequentemente priorizado modelos explicativos externos, observacionais e normativos. Tais modelos tendem a descrever o comportamento autista em termos de défices (na empatia, na teoria da mente, na comunicação), partindo de um ponto de vista heterocentrado e funcional. Contudo, a tradição fenomenológica oferece um caminho alternativo: compreender o sujeito autista a partir da sua vivência primeira, do seu corpo vivido, da sua presença no mundo e da sua consciência de si. Esta abordagem não visa negar as dificuldades reais que o autismo pode implicar, mas propõe uma reorientação ética e epistemológica: compreender a pessoa autista a partir da forma como ela própria se compreende, e não apenas a partir de modelos interpretativos que a colocam como “outro deficiente”.


A compreensão humana da pessoa autista exige um duplo movimento: um que se dirige ao modo como o outro a percebe, e outro, mais silencioso, que procura escutar como ela própria se percebe. Este segundo movimento — o da autoconsciência da pessoa autista — é frequentemente negligenciado ou desconsiderado em contextos clínicos, educativos e sociais. No entanto, constitui a chave para uma abordagem ética e verdadeiramente compreensiva da neurodivergência.


Precisamos enquanto pessoas não autistas e ainda mais como clínicos que trabalhos com pessoas autistas fugir ao erro empático. Tal como Martin Buber partilhou em relação à compreensão interpessoal, dizendo que esta implica um esforço de alteridade. Colocar-se diante do outro sem reduzi-lo ao próprio modo de ser. No entanto, ao tentar compreender a pessoa autista, os profissionais e familiares muitas vezes projectam expectativas neurotípicas sobre comportamentos, silêncios ou formas de estar. O que é lido como desinteresse pode ser, na verdade, sobrecarga sensorial. O que parece falta de insight pode ocultar uma reflexão interna contínua e silenciosa.


E este exercicio da inclusão da filosofia do autismo não retira a importância do modelo médico e das suas assunções. Não relega para um segundo plano o diagnóstico tal qual ele hoje é compreendido, ou a importância da intervenção psicológica e médica. Muito pelo contrário, engloba todos eles na procura de estar com o Outro autista. Neste sentido, compreender a pessoa autista requer uma escuta que não procura adaptar o outro ao próprio quadro de referências, mas que se deixa afectar pela diferença. É uma escuta filosófica, clínica e ética — que reconhece que há múltiplas formas de ser pessoa, e que todas merecem consideração e sentido.


A compreensão da pessoa autista não pode ser construída apenas a partir de fora. Requer um esforço deliberado de aproximação à sua autoconsciência, muitas vezes comunicada por vias alternativas, subtis ou profundamente idiossincráticas. Quando abrimos espaço à forma como a pessoa autista se compreende a si mesma — com os seus ritmos, metáforas e silêncios — não apenas a compreendemos melhor: reaprendemos o que é compreender alguém.

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