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A cor da vergonha

Na altura não sabia como lhe havia de dizer, disse Susana (nome fictício), mãe da Catarina (nome fictício). Na verdade, na altura nem sabia como havia de dizer aquilo a mim mesma, refere. As dúvidas eram muitas e continuavam a assaltar-me. E as respostas não chegavam. E a vergonha ia tomando conta de mim. O pavor do que lhe podia acontecer, de como ela iria reagir, tudo aquilo tomou conta de mim e eu não lhe consegui contar, acrescenta. Mas com o passar dos dias e semanas, todos aqueles sentimentos iam-me devorando, de dentro para fora. Deixei de comer. A vergonha matava-me a fome e cada vez mais sentia que ia enlouquecer, confessa. Comecei por escrever algumas coisas num papel. Pensei que seria a melhor forma de começar, refere. Foi assim que fiz com muitas das outras situações da vida que me envergonharam, diz. Toda a minha vida foi tingida de vergonha. Desde a minha infância, em que a minha mãe me envergonhava quando me ia buscar à escola. Ou quando o meu pai me comparava com os meus irmãos. Até quando disse aos meus pais que estava grávida da Catarina e eles me perguntaram quem era o pai, eu senti-me envergonhada. Não tinha nenhum nome para lhes dar. Nem eu me lembrava do nome dele. O silêncio do meu pai foi a pior das vergonhas sentida. Nem sequer consegui ouvir aquilo que a minha mãe dizia. Mas a sua cara deixava adivinhar. E assim a minha filha Catarina foi filha da vergonha. E agora não lhe consigo dizer aquilo. Nem tenho coragem de dizer sequer o nome. E por isso escrevi. Para mim escrever é como se não tivesse sido eu a dizer. Era algo que estava fora de mim, estava no papel, conclui.


Querida Catarina, tens de perceber que há algo de errado contigo, na verdade, algumas coisas. Tens esta doença que é muito comum em pessoas da tua idade que passaram por algumas das coisas que tens... chama-se autismo, e juntas podemos curá-la com o tempo, escrevi-lhe.


Depois daqueles anos todos sem nenhuma de nós falarmos sobre aquilo, pensei que tu própria também sentisses vergonha, e tal como eu não quisesses falar, diz Susana. E no dia em que chegaste perto de mim com aquele mesmo envelope ainda por abrir voltei a sentir o silêncio do meu pai a abater-se sobre mim. Mas desta vez eras tu. Não tinhas aberto a carta que te escrevi.


Achas que eu não sabia que era autista?, pergunta-lhe Catarina, agora com 19 anos. Na altura em que tinham ido à consulta Catarina tinha seis. Toda aquela conversa do médico que não percebi onde ele estava a querer chegar, lembro-me perfeitamente como se fosse hoje, diz-lhe. Eu sabia perfeitamente que era autista. Já tinha visto umas coisas na televisão e também na internet. E além disso o avô também era autista. E ele também foi fazendo a vida dele, refere. Desta vez foi Susana a ficar em silêncio, pois pensava que Catarina não soubesse daquele segredo da família. A mãe de Susana tinha-lhe feito prometer que ela nunca haveria de dizer nada a ninguém. E Susana cumpriu-o. Como é que soubeste?, perguntou à filha. Não perguntei, respondeu-lhe esta. Tal como também nunca te perguntei nada a ti!, disse Catarina à mãe. Como assim?, perguntou-lhe esta. Não estou a perceber!, continuou. Pois não, ainda não percebeste, disse Catarina. A tua vergonha ocupou o lugar do teu autismo e por isso nunca o conseguiste sentir, disse-lhe Catarina.


Foi então que Susana deixou cair a carta ainda por abrir no chão e com as mãos libertas abraçou a filha, mesmo que nunca o tenha conseguido fazer devido à sua dificuldade com o toque.


 
 
 

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