Nunca tinha visto os meus pais a beijarem-se. Quer dizer, acho que era isso que eles estavam a fazer. Quando as pessoas querem dizer segredos dizem junto à orelha da outra pessoa, não junto à boca. Tinham-me ensinado isso na escola. A não ser que se trate de um segredo diferente. Talvez seja melhor apontar no meu caderno de dúvidas a responder. Eu tenho um caderno onde aponto tudo o que constitui uma dúvida a responder. Já vou no décimo quinto caderno. Cada um tem cento e vinte e oito folhas. Excepto o quarto caderno em que a minha mãe arrancou uma das folhas quando ela me puxou o caderno da mão. Ela disse que foi sem querer. Eu apontei essa dúvida na folha seguinte e essa dúvida tem vindo a transitar de caderno em caderno. Eu podia ter menos cadernos se escrevesse nos dois lados da folha. Se assim fosse eu teria duzentas e cinquenta e seis folhas folhas. Não sei porque não dizem duzentas e cinquenta e seis folhas. E apenas contam cento e vinte e oito. Se eu olhar bem para a folha de uma determinada perspectiva eu consigo ver que estão lá duas folhas. E por isso é que muitas pessoas escrevem de ambos os lados. Eu não. Não gosto da sombra que as palavras de um lado fazem às do outro lado.
Os meus pais ofereceram-me uma câmera de filmar em mil novecentos e setenta. Ainda que tivesse apenas oito anos nessa altura, já tinha mostrado ter responsabilidade suficiente. Aos seis anos tinha conseguido ficar um fim de semana inteiro a cuidar de um peixe dourado que me tinham oferecido e salvei-o pelo menos três vezes do ataque do nosso gato Rafael. Eu penso que o salvei uma quarta vez porque o peixe tinha dado uma volta ao contrário e parecia não estar a conseguir colocar-se na posição correcta. Não sei porque deram nome ao gato e muito menos um nome de pessoa. Quando eu nasci o gato já se chamava Rafael. Não este, mas o primeiro gato que os meus pais tiveram, que se chamava Rafael. Mas depois morrei por insuficiência renal. Não sabia o que era mas depois fui à procura de tirar essa dúvida. Tinha-a apontado no meu segundo caderno. Os meus pais quiseram dar o mesmo nome a este gato também. Não percebo porque insistem em dar um nome e ainda mais um nome de pessoa a um gato. Um gato é um gato. Seria igual ao que na verdade acontece. Rafael é Rafael. Apontei essa dúvida quase no fim do segundo caderno, ainda que tenha feito um apontamento sobre a dúvida de vir a conseguir responder a ela. Não fiquei agradado de o ter escrito, mas não ficaria bem comigo próprio se não o escrevesse. Afinal era aquilo que estava a pensar.
Os meus pais dizem que me ofereceram a câmera de filmar porque eu ficava a pensar em tudo aquilo que eu via. E pensaram que daquela maneira eu poderia ficar com a cabeça um pouco menos ocupada com tudo aquilo que eu via. Na verdade isso não aconteceu, mas eu achei melhor nunca lhes dizer nada. Afinal de contas eles tiveram um gesto simpático em me terem oferecido a câmera de filmar. E eu confesso que gosto do resultado. Nunca gostei muito das fotografias por uma simples razão de que tinha de ficar a imaginar o que as pessoas estavam a fazer antes e o que iam fazer depois. Perguntei duas ou três vezes aos meus pais e percebi que eles não sabiam, apesar de me fazerem o favor de procurar inventar uma história, O meu pai inventava o que estavam a fazer antes e depois olhava para a minha mãe inventar o que iam fazer a seguir. Nem sempre eles se combinavam. E além disso eu percebia que aquilo não parecia fazer muito sentido. O meu pai principalmente nunca foi uma pessoa de inventar coisas. O meu pai vendia coisas. Não as inventava. Mas era uma tarefa fundamental. Afinal de contas o que faria a pessoa que inventa as coisas se não as conseguisse vender. Essa era a invenção do meu pai. A partir de certo momento ainda procurei ser eu a inventar na minha cabeça o que as pessoas na fotografia estariam a fazer antes e depois. Mas não me conseguia decidir naquilo que haveria de ser. E ficava muito tempo a fazê-lo. Compreensivelmente a câmera de filmar veio resolver isso. Até porque ficar muito tempo a olhar parado para uma fotografia levava a que as pessoas ficassem a olhar também muito paradas para mim e com um olhar quase tão estranho quanto o meu. Uma vez perguntei à minha professora se ela estava a olhar para mim como uma fotografia. Ela não percebeu. Mas mandou chamar os meus pais à escola. Na verdade eu até gostava. Era da forma que me podiam trazer um reforço do lanche. Os outros colegas ficavam preocupados quando os seus pais eram chamados à escola. Perguntei a alguns deles se não pediam aos pais para trazer um reforço do lanche. Ficavam a olhar para mim e a abanar a cabeça. Aquele movimento era diferente de muitos outros. Não era um abanar de comichão. Mas também não era um abanar de negação. Era outra coisa. Uma vez pedi a uma colega minha se podia gravar vários daqueles seus movimentos com a minha câmera de filmar. Ela aceito. A Madalena (nome fictício) aceitou muitos dos meus pedidos. E para formalizar a situação perguntei-lhe se ela queria ser a minha assistente de filmagens. Aos dezoito anos deixei de saber da Madalena. Soube que tinha ido estudar cinema para Londres.
Por que é que eu estou a escrever tudo isto? Porque me pediram para pensar num artigo que falasse da relação do cinema com o autismo. É verdade, eu esqueci de dizer sou autista. Sou-o desde sempre, apesar de apenas terem dito que descobriram isso quando eu tinha trinta e dois anos. Se tivessem dado atenção a algumas das minhas dúvidas apontadas nos meus cadernos teriam percebido. Uma vez levei os meus cadernos para o psicólogo que os meus pais disseram para eu ir. Tinha escrito até então oito cadernos. Estava quase a meio do nono caderno. Não penso que o psicólogo tenha lido todos os cadernos. Na verdade, escrevi essa dúvida ainda faltavam vinte páginas para o final das cento e vinte e oito páginas e ele não disse nada. Para mim aquela dúvida ficou resolvida. E isso coincidiu com o facto de ter pedido aos meus pais para deixar de ir ao psicólogo. Eu continuei a escrever e a filmar. Dizem que muito daquilo que eu escrevo e filmo mostra o autismo. Não sei se é verdade. Sei que mostra o que eu vejo e não aquilo que eu eu quero ver. Coisa que eu penso que as pessoas pensam quando vêm um filme. Não o que lá está mas sim o que querem ver. Eu disse-lhes que a maior parte dos filmes não fala do autismo. Fala do que algumas pessoas pensam do autismo. Um filme que fale sobre o autismo não coloca toda aquela informação em cena. Ou as personagens autistas cheias de características como se fossem rótulos para que os telespectadores não tivessem dúvidas quando o estivesse a visionar. Quando se filma um queijo não se coloca um post it em cima dele com a palavra queijo escrito. As pessoas sabem o que é um queijo e que aquilo é um queijo. E algumas pessoas até sentem o cheiro daquele queijo mesmo que estejam a ver o filme. Essa é uma dúvida que eu próprio tive e depois acabei por resolver. Penso que terá sido no décimo segundo caderno. Mas estes filmes não são assim. Parecem fotografias. E as pessoas precisam de perguntar o que estavam a fazer antes e depois. Tal como eu também já tinha feito.
Querem fazer um filme do autismo? Não o façam! Isso mesmo, não o façam. Façam filmes das pessoas, das suas ideias, dúvidas, da forma como soluçam quando comem um pão demasiado à pressa. Ou como o barulho da porta de entrada no inverno se parece com aquele som das portas a fechar nos filmes de terror. E que depois quando o nosso pai coloca alguma coisa nas dobradiças isso deixa de acontecer. Claro que as pessoas autistas têm aquelas ou outras coisas! As pessoas que o afirma devem pensar que isso é uma constatação brilhante e que merecem ganhar um prémio. As pessoas têm coisas. Todos temos coisas. As pessoas autistas têm as suas coisas. Os meus pais tinham as suas coisas. Ainda as têm. Morreram o ano passado. Mas os filmes continuam a mostrar as suas coisas. Este último ano é o que tenho feito, vivido todas aquelas coisas.
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