70 anos de autismo
- pedrorodrigues

- 29 de ago.
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Em 2045 também terei setenta anos. Terei rugas, cabelo branco, marcas do tempo que não poupa ninguém. Mas haverá uma diferença essencial. Não carregarei comigo setenta anos de autismo, como a Celeste e o Antero, nomes fictícios, mas vidas reais, carregam agora.
Na vida, tantas vezes dizemos ou ouvimos dizer: se eu soubesse o que sei hoje, teria feito diferente. Normalmente este lamento surge quando uma decisão tomada em certa altura da vida trouxe consigo perda ou sofrimento. Se eu soubesse que esta escolha me traria doença, teria decidido de outra forma. No entanto, nem tudo na existência é produto da decisão. Há realidades que nos habitam desde sempre e que moldam o nosso percurso. Se uma criança recebe um diagnóstico de diabetes tipo 1, a sua vida será inevitavelmente atravessada por essa condição. Mas as escolhas, os cuidados, o acesso a tratamento, podem reduzir o impacto dessa doença na perda de anos de vida saudável.
É precisamente aqui que precisamos de pensar no autismo. Em 1990 estimava-se que existiam 894 pessoas autistas com setenta ou mais anos. Em 2021, o número subiu para 2479. Um aumento de 177 por cento em apenas três décadas. Projeta-se que em 2045 ultrapasse as seis mil pessoas. Este crescimento revela uma realidade inescapável: estamos a envelhecer com autismo, mas continuamos sem as políticas de saúde e de inclusão necessárias para que a vida destas pessoas seja vivida com dignidade e plenitude.
O autismo carrega consigo uma carga de anos de vida ajustados por incapacidade. Essa métrica, os DALYs, procura traduzir em números o impacto de uma condição na vida humana. No caso do autismo, esse impacto não decorre apenas da condição em si, mas do estigma persistente, do desconhecimento generalizado, da escassez de profissionais formados, das comorbilidades psiquiátricas e físicas, da mortalidade prematura que ainda é uma ferida aberta. Cada variável acrescenta peso a este fardo, diminuindo o tempo de vida saudável de milhares de pessoas.
E no entanto, os DALYs existem para algo maior do que a estatística. São um alerta. São a medida que nos mostra o que pode ser transformado se o conhecimento científico for traduzido em ação política, em programas de saúde, em estruturas sociais capazes de amparar e libertar. O sentido da humanidade não reside apenas em conhecer. Reside em agir a partir do que se conhece.
Se nada mudar, em 2045 os anos de vida perdidos por incapacidade no autismo rondarão os novecentos. Cada DALY representa um ano de vida saudável roubado. Cada DALY é uma história que poderia ter sido diferente.
A questão que se impõe é esta: o que precisa de acontecer para que os responsáveis pela saúde e pelas políticas sociais olhem para o que já sabemos hoje? O que precisa de acontecer para que esse saber se transforme em mudança? As pessoas que em 2045 terão setenta anos e autismo não podem esperar que o futuro repita a negligência do presente. O que lhes está em jogo não é apenas longevidade. É a possibilidade de viverem vidas inteiras, plenas, menos marcadas pelo peso da incapacidade e mais preenchidas pela dignidade de existir.




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