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Foto do escritorpedrorodrigues

É mais fácil enviar cartas da prisão

Não escrevo estas palavras com vontade de pedir perdão. Ainda hoje não sei o que é ter vontade e muito menos perdão. Chamo-me Carlos (nome fictício) e tenho 42 anos. Estranhamente sempre me senti mais livre enquanto estive preso. Talvez não seja estranho. Até porque nunca me senti outra coisa senão preso. Principalmente a este meu corpo que nunca compreendi. Quanto aos outros, eles nunca me prenderam. Simplesmente nunca me compreenderam. Mas isso não é uma prisão. Essa apenas acontece quando tu próprio não te libertas. E para isso precisas de te conhecer. Ninguém liberta aquilo que não sabe.


Andei de mãos em mãos. Já em pequeno parecia que ninguém me queria ao colo. Diziam que gritava muito. E que não parava de gritar durante horas. Conheci muitas mãos e muitos colos que de colo nada têm. Há muitas pessoas que não sabem pegar numa criança. Ainda hoje tenho a memória no meu corpo de algumas dessas mãos que me pegaram.


Não gostava da escola. A bem da verdade nunca soube se gostava da escola ou não. Passava lá pouco tempo. Andava sempre cá fora, lá dentro, cá fora, lá dentro. As pessoas não me deixavam perceber se gostava da escola ou não. Uma vez com seis anos bati num colega meu. Ele não me estava a deixar ouvir a professora. E eu queria ouvir a professora. Avisei-o duas vezes. Na terceira atirei-o ao chão. Ficaram todos a olhar para mim. Não quiseram saber da minha explicação.


Voltei a andar de mãos em mãos. Depois foram médicos, pedopsiquiatras, e muitos psicólogos. Queriam compreender-me. Uma vez disse que um deles que se quisesse fazê-lo teria pelo menos de vir até ao ponto onde eu me encontrava. Nem se mexeu da cadeira onde estava sentado. Perguntou-me antes como é que eu estava. Respondi-lhe que angustiado. Percebi que havia palavras que estas pessoas gostavam de ouvir. Aprendi muitas. Oposição, manipulador, narcisico, psicopata, etc. Mais tarde quando cumpri o meu primeiro tempo num centro juvenil acabei por ler algumas coisas do comportamento humano. Também não tinha mais nada para fazer lá dentro. Não gostava de jogar à bola. E muito menos de conversar com a maior parte das pessoas. E se não estivesse entretido com nada acabava por ficar onde estivesse a olhar para o vazio. E depois havia sempre alguém que haveria de se vir meter comigo. E as coisas não acabavam bem.


Com dezassete anos voltei a cumprir pena por queixa de abuso sexual. Não percebi porquê. E não, não é conversa habitual de quem foi considerado culpado. Ela andava de volta de mim há bastante tempo. E conversava comigo de uma forma calma. Ninguém conversava comigo e muito menos de uma forma calma. Achei que estaria interessada em fazer sexo. Mais tarde quando estive no tribunal chegaram a perguntar-me se gostava dela. Respondi rapidamente que não. Não lhes ia mentir. Não gostava dela. Mas queria ter sexo com ela. Isso não é nenhum crime. E também achei que ela o queria. Por isso é que eu acho que nunca abusei dela. Foi a única pessoa que aceitei que me tocasse. Não sei porquê? Talvez porque me tenha falado de forma calma como ninguém o fizera.


As situações foram-se acumulando. As comissões de protecção de crianças e jovens andava sempre a bater à porta dos meus pais. E os meus pais a seguir batiam em mim. Era assim o ciclo. Terminou quando eu tinha catorze anos. Eu já sabia o que havia de acontecer a seguir à visita da comissão. Tinha guardado no meu bolso um canivete. Quando o meu pai avançou para mim e me agarrou garanti que não me voltasse a agarrar. Espetei-lhe o canivete no corpo. Não morreu. Não estava à espera que morresse. Não era a primeira vez que lhe espetavam alguma coisa. Não me voltou a tocar. Principalmente porque deixei de viver em casa. Andei de Instituição em Instituição. Uma coisa boa que têm é que a partir de determinada altura as pessoas que lá andam vão ficando por lá. Não são adoptadas. Apenas movidas para outra Instituição quando chegam a determinada idade. Como andei por umas quantas Instituições repetidas já me conheciam, e eu a eles.


Quando cheguei aos dezoito quis começar a trabalhar. Não sabia no quê. Não queria saber, até porque não havia nada que gostasse. Nunca houve. Mesmo que houvesse alguma coisa que fizesse durante determinado tempo isso não significava para mim que gostasse. Para mim gostar haveria de ser outra coisa. Não haveria de ser uma coisa banal e que se dizia apenas porque se estava a fazer algo. Mas ninguém me queria para trabalhar. Acho que sabiam do meu cadastro. Não percebo porque é que lhes diziam alguma coisa. Já se sabia que as pessoas não aceitavam ninguém com este percurso. Porque haveriam de partilhar essa informação com quem não sabe lidar com essa informação. Trabalhei duas semanas na construção civil. Vim embora porque não aceitava a escravatura. Não achei que aquilo fosse um trabalho. Ainda por cima passavam o dia a gritar e a dizer asneiras. A primeira vez que reagi negativamente a um colega meu que estava para lá a gritar com outro e a chamar-lhe tudo as coisas não correram bem. Virou-se para mim e perguntou-me se eu era alguma flor de estufa. Não percebi o que estava a querer dizer. Mas também não quis saber mais. Assim que ele e outros desataram a rir dei-lhe com a pá da areia na cara. Pararam de rir. Chamaram a PSP. Eu já sabia o que tinha de fazer. Deixava-me estar quieto e eles faziam tudo. Já bastava terem de me tocar e colocar as algemas.


Nesse verão fui trabalhar para a restauração. Estavam a precisar desesperadamente de pessoas, e talvez por isso me tenham aceite. Eu sabia uma coisa ou outra de restauração. A minha mãe trabalhou uma vida inteira em restaurantes. Ela contava-me tudo o que fazia por lá. Não parecia saber o que me dizer ou perguntar sobre o meu dia. E eu facilitava-lhe o trabalho e perguntava-lhe como tinha sido o seu dia. Aprendi numa das consultas de psicologia a que fui uma vez. E a minha mãe lá me contava tudo de como ser um excelente empregado de mesa. Acho que por isso acabei por causar uma boa impressão. Não durou muito. Algumas pessoas simplesmente não deviam sair de casa quando estão para embirrar com tudo e com todos. E não, não não estou a falar de mim, apesar de ser uma pessoa convencidamente rígida e inflexível. Mas alguns clientes pensam que podem tratar as pessoas de qualquer maneira apenas porque estão a trabalhar. E foi mais ou menos isso que aconteceu. O resto penso que já perceberam. Chamaram a PSP e acabei por estar mais algum tempo detido.


Uma vez perguntei a um dos agentes da PSP o que é que tinha de fazer para ficar preso durante mais tempo. Ao que ele me respondeu que pessoas como eu nunca haveriam de existir ao cimo da terra. Acho que ele me acabou por responder à minha pergunta mesmo sem saber. Dei-lhe uma cabeçada. Não era forma de falar com ninguém. Afinal é um agente de autoridade. Desta vez acabei por ficar mais tempo preso.


As condições são boas. Para mim estão óptimas. Sempre me chegou ter um pequeno espaço onde o meu corpo coubesse. Sempre era uma boa forma de não estar lá mais ninguém. Não cabiam mais ninguém, apenas eu. E isso permitia que eu ficasse tempo suficiente a fazer o que mais gosto, a pensar. Um dia um dos colegas da ala perguntou-me porque é que eu não escrevia. Quando lhe perguntei porquê, disse-me que me ouvia a murmurar o dia inteiro. E que talvez fosse melhor escrever, até porque assim não o incomodava.


Arranjei alguém cá fora para me corresponder. Não foi tarefa fácil. Não tinha ninguém na família. Não vejo que o meu pai quisesse ler as minhas cartas. E a minha mãe continuava a não ter tempo. Visitava-me uma vez por mês. Há três meses que já não vinha. O resto da família não queria saber de mim e o sentimento era correspondido. Não queria esperar por ter de estabelecer uma relação com alguém para que pudesse ter alguém a quem enviar cartas. Um dia sonhei com a minha escola primária. De manhã quando acordei fui procurar a morada da escola. Passei a enviar para lá as minhas cartas. Nunca ninguém me respondeu. Eu também não estou à espera que me respondam. Não é por isso que as escrevo. Não é por isso que faço as coisas. Ainda não sei por que as faço. Mas tenho tempo para as fazer. E é mais fácil enviar cartas da prisão.


Hoje já não dá para enviar esta. Mas amanhã é segunda-feira, logo envio esta. Primeiro ainda tenho de ir à consulta do Psiquiatra. Sempre quero saber o que é que ele me vai dizer sobre aquela conversa de eu seu do Espectro do Autismo.


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