- Não fala?
- Quem? Sim, fala. Porquê?
- Ainda não disse nada!
- Talvez porque não queira dizer nada, já pensaste?
- Tinhas dito que ele é autista!
- Sim, tinha.
- Mas ele também é não verbal?
- Sim, é.
- Por que é que achas que ele está ali há mais de um hora a olhar para o mar?
- Por que é que achas que ele está a olhar para o mar? Porque está virado para ele, claro.
- Tens razão. Ele está virado para ele, mas não é para o mar, mas sim para si mesmo.
- Então? Está à procura das palavras.
- Mas ele é não verbal.
- E então? Quando estás em silêncio não tens palavras dentro de ti?
- Pois. Isso mesmo, pois.
- E por que achas que ele vem para a praia para fazer isso?
- Porque é o único sitio que parece estar mais em luta do que ele próprio está dentro de si.
- Como assim?
- Por causa das ondas. Já tinhamos ido a vários outros sítios. Miradouros, pontes, montanhas, desfiladeiros. Mas nada parecia funcionar. Aquela calma lá fora parecia destoar nele. Mas não aqui.
- E como sabes que é por causa disso?
- Ora essa, porque ele me disse! Como? Tu tens estado a prestar atenção ao que te digo? Porque ele falou comigo!
- Mas tinhas dito que ele é não verbal.
- Quando estás em silêncio está calada?
- Já percebi.
- E ele fala muito. Assim como as ondas. Por isso ele gosta tanto de vir para aqui. Diz que o mar está tão ou mais agitado que ele próprio. As ondas não param. Assim como os pensamentos deles. E sobrepõem-se. As ondas e os pensamentos. E ao fim de algum tempo ficam mais calmas e desaparecem. As ondas e os seus pensamentos. E depois vem outro. E outro. E mais outro.
- E ele não se incomoda de estar ali aquele tempo todo?
- Não. Incomoda-se com muitas outras coisas. Incomoda-se que os outros falem dele como se ele não ouvisse.
- Achas que percebes alguma coisa do mar? Eu também não. Mas se olharmos para ele percebemos que está mais agitado, revolto ou tranquilo. E o mar aparentemente também não fala. Ou também é não verbal.
- Ele diz que está constantemente a lutar contra o seu corpo. É como quando colocaram as pedras na praia para fazer um paredão. O mar continuou a lutar. A fazer aquilo que sempre fez. Independentemente da vontade das pessoas. É assim com ele. Apesar de pensar as coisas, o seu corpo não deixa de sentir outras.
- Ouve as pessoas dizer que não sabe pensar, zanga-se. Zanga-se muitas vezes. O que coincide com o número de vezes com que as pessoas dizem que ele não sabe pensar. É como se as pessoas acham-se que o mar não sabe fazer aquilo que faz todos os dias. Também aprende. O mar e ele também. Mas tal como muitos não sabem conhecer e avaliar o mar, também não o sabem fazer com ele. Porque ele aprende. Se há coisa que ele faz é aprender.
- Ele costuma dizer que cada vez que aprende uma coisa nova é como se houvesse umas cheias. Nem sempre foi assim. Antes havia espaço para entrar mais e mais aprendizagens. Tal como a água. Mas quando ele começou a querer fazer coisas com as suas aprendizagens foi mais difícil. Os outros tinham colocado muitas barreiras no mar. E começaram as cheias. E as pessoas passaram a reclamar mais, e mais. E as cheias aumentaram. Chegaram mesmo a interditar a entrada na praia. E também a sua entrada em certas escolas. Aquele não parecia ser o mar certo.
Quanto ao facto dele ser imprevisível, também o mar o é. E não é por isso que as pessoas o continuam a olhar e por vezes a tentar entrar dentro de si.
- O que que é que ele costuma fazer?
- Aquilo que o mar faz. Aquilo que gosta ou quer. A maior parte das vezes procura galgar as paredes que lhe colocam. Mas normalmente faz coisas habituais, como o mar.
- Mas ele faz tudo o que os outros da idade dele fazem?
Não, mas deseja. Tal como o mar.
- Como assim?
- O mar também gostava que o respeitassem, o deixassem de poluir ou destruir, de colocar barreiras ou barragens. Assim é ele. Procura fazer tudo aquilo que gosta ou quer fazer e que parece não haver grandes constrangimentos. Mas não deixa de lutar pelos seus direitos ou os do mar. Tem participado em algumas reuniões e manifestações pacificas.
- Como é que ele reagiu ao ver o mar pela primeira vez?
- Da mesma forma que sentiu que estava a comunicar comigo e eu o entendi.

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