Lá em casa todos os cantos tinam livros, diz Dulce (nome fictício). Até aos oito anos cheguei a pensar que algumas das paredes de minha casa seriam feitas de livros. Os livros alinhavam-se todos por ordem. O meu pai nunca permitiu que a sua ordem fosse alterada. Perguntava-nos sempre o que nós acharíamos se alguém trocasse os factos da História. Não havia como contraria-lo. E muito menos não acatar a sua ordem. Certo dia cheguei perto do meu pai com o livro God is Dead do Nietzsche na mão e perguntei-lhe como é que era possível, diz Dulce. Não foi muito diferente da sensação que tive da primeira vez que fui comungar e fiz o corredor até chegar perto do padre, continua. A sensação de que todos aqueles que estavam sentados ou ainda em pé à espera de fazer o mesmo que eu, estariam a ler-me os pensamentos à medida que eu avançava. Não me saia da cabeça as palavras - corpo de Cristo. A forma como vivia a religião naquela altura é muito diferente deste momento. Até porque naquela altura o lugar do divino ainda era ocupado pelo meu pai e não por uma ideia transmitida na catequese. Para acreditar em Deus é preciso aprender a questioná-lo!, disse-o muito solenemente. Vai arrumar o livro no sitio onde ele pertence!, disse-o de seguida. Aquela frase tinha sido profética - Para acreditar em Deus é preciso aprender a questiona-lo! Senti na altura que a partir de então tinha liberdade para fazer as minhas perguntas que sempre estiveram lá presentes. Sempre fui uma rapariga com um pensamento analítico. Tanto quanto a rigidez com que o meu pai arrumava os livros. A lógica sempre imperou em tudo aquilo que eu faço. E ainda hoje me esforço para que as minhas escolhas possam ser as mais eficientes possíveis. A ideia de fazer mais passos do que aqueles que são necessários para fazer algo é impensável para mim. Talvez por isso em determinado momento da minha vida tenha pensado na possibilidade da minha pessoa ser ateia. Pensamento que me causava bastante angustia, não fosse o mesmo transpirar dentro das paredes lá de casa. Mas rapidamente percebi que não era o caso. Ainda que tenha passado a pensar que agir sob o comando de Deus é um dado, mas responder ao chamamento Dele é um dilema que ainda hoje continua. E eu tinha tido dois amigos imaginários. E como tal isso podia ter-me ajudado. Mas os amigos imaginários tinha sido criados por minha vontade. E Deus tinha-me sido apresentado. Como é que poderia responder a um Deus que se definia antes de mais nada pela sua distância de nós? Como podia agir num mandamento divino se não podemos nem mesmo ter certeza de que aquele comando foi feito por nós? As perguntas não paravam de surgir. Assim como a frase do meu pai - Para acreditar em Deus é preciso aprender a questioná-lo! Eu não sabia se era aquele tipo de questionamento a que ele se referia. Uns tempos mais tarde cheguei a ler umas coisas acerca da religião e do autismo. Curioso ter encontrado uma coisa quando procurava outra, disse Dulce. Comecei a procurar na internet as minhas questões em relação à religião. Talvez pelas perguntas que escrevia e porque algumas outras pessoas também já as tinham feito de forma igual, o certo é que me começou a aparecer coisas sobre o autismo nas minhas pesquisas. Como sempre me acontecia, sempre que via uma coisa nova não conseguia resistir e fui procurar saber mais. E foi assim que me descobri. A frase - Deus escreve direito por linhas tortas, nunca me fez tanto sentido. Ainda que primeiro tenha lido a sua explicação, porque das primeiras vezes não tinha percebido o que quereria significar. À medida que lia mais e mais sobre o autismo mais sentia que estava a ler sobre mim. E aquilo fazia-me sentir liberta. Da mesma forma que lia algumas das razões pelas quais alguns investigadores referem o porquê de se encontrar menos pessoas autistas religiosas. Ou que pelo menos professem a sua religião de uma forma típica e semelhante a todos aqueles que professam essa mesma religião. Assim como eu sempre me sentira. Por isso a palavra espiritualidade veio substituir um lugar vazio em mim e que a religião não conseguia ocupar. A minha forma mais analítica, racional, lógico-dedutiva parecia não me permitir sentir verdadeiramente religiosa. Pelo menos não daquela forma como muitas das pessoas da paróquia expressava. As pessoas não se questionavam. Faziam como se tudo aquilo fosse natural, sem recurso a uma reflexão ou argumento racional. Mas isso não significa que tenha de haver uma correlação entre o ateísmo e o pensamento analítico, ainda que pareça mediar alguma descrença. Apesar de quando em pequena me sentava no banco do parque e imaginava Deus ali ao meu lado por cima dos meus ombros, apenas pensava que ele era real mas de uma maneira diferente do banco ou do sonhar acordada. E ainda hoje recordo a frase do meu pai - Para acreditar em Deus é preciso aprender a questioná-lo! Ainda que não tenha tido oportunidade de lhe dizer o quanto importante aquela frase foi para mim. Todas as semanas vou ter com ele ao cemitério e fico lá um pouco a falar com ele. Da mesma forma que aprendi a falar com Deus, também o aprendi a fazer com o meu pai, ainda que ambos sejam difíceis de ser questionados.
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