Post | Autismo no Adulto
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Carta a um/a jovem

Consigo? SerĆ” que consigo?, perguntava-se AntĆ³nio (nome ficticio). As coisas parecem na maior parte das vezes difĆ­ceis, pensava. Na verdade, a maior parte das coisas era a primeira vez que as fazia, continuava. No natal em que fiz onze anos recebi uma carta do meu avĆ“. Nunca tinha recebido uma carta na minha vida. NĆ£o sabia o que se fazia com uma carta. Tiveram que me explicar. Uma carta nĆ£o era apenas uma folha com palavras. Havia que as ler, compreender, perceber o porquĆŖ das mesmas terem sido escritas por quem as escreveu. E nĆ£o ficava ali. Depois havia que pensar no que responder, perguntar ou contar. Antes que tivesse escrito a minha primeira carta ainda demorou um pouco, diz AntĆ³nio. Se houve coisas que foram mais rĆ”pidas outras demoraram um pouco mais. Se consegui ler e compreender o que lĆ” estava escrito. O resto jĆ” nĆ£o foi assim tĆ£o fĆ”cil. E algumas nĆ£o percebia o porquĆŖ. O porquĆŖ das mesmas e o porquĆŖ das mesmas serem difĆ­ceis, refere. Se jĆ” conseguia fazer coisas que mais ninguĆ©m fazia, por que nĆ£o sabia fazer uma carta do principio ao fim, diz. SĆ³ consegui enviar uma carta de volta ao meu avĆ“ quando tinha dezanove anos. O meu avĆ“ morreu no ano seguinte. Nessa altura a carta parecia jĆ” nĆ£o ser assim tĆ£o complicada. As questƵes que tinha eram outras. Quem sou e para onde vou?, perguntava-se AntĆ³nio. E as perguntas para mim nĆ£o ficavam ali. Quando me perguntava quem sou, tambĆ©m me perguntava o porquĆŖ de ter de ser o que quer que fosse. Por que Ć© que alguĆ©m teria de ser algo para ser alguĆ©m? perguntava-se. Se a pessoa se perguntava nĆ£o seria jĆ” alguĆ©m? continuava. Poucos anos mais tarde, jĆ” teria vinte e dois anos e perguntei-me se seria amado e desejado, diz AntĆ³nio. Nunca tinha percebido a importĆ¢ncia dessa pergunta, ainda que jĆ” a tivesse ouvido vĆ”rias vezes. Os meus colegas na faculdade falavam bastante sobre isso. As questƵes foram sendo muitas. Sempre o foram e ainda nĆ£o acabaram. Mas penso que ter tido uma carta que me explicasse boa parte disso teria sido vantajoso, diz AntĆ³nio. Talvez por isso tenha decido aos onze comeƧar a escrever uma carta para os jovens do futuro. Aqueles que seria parecidos comigo, conclui.


AntĆ³nio foi diagnosticado com SĆ­ndrome de Asperger em 1994. Tinha onze anos. Precisamente na altura em que essa condiĆ§Ć£o entrou na DSM-IV. E um ano depois entrei eu na Universidade. Ainda me recordo que na altura se falava muito de um termo que tinha surgido. GeraĆ§Ć£o rasca. Todos sabĆ­amos o que queria dizer rasca. E mesmo que pudĆ©ssemos nĆ£o saber o que significava geraĆ§Ć£o, podĆ­amos depreender que nĆ£o era uma coisa boa ser uma GeraĆ§Ć£o rasca. Para quem nĆ£o recorda ou tem conhecimento, o termo foi usado pelo jornalista Vicente Jorge Silva num editorial do Jornal O PĆŗblicoĀ a quando das manifestaƧƵes estudantis em protesto das provas globais no Ensino SecundĆ”rio.


NĆ£o sei se o AntĆ³nio se apercebeu de alguma coisa dessa noticia. Provavelmente nĆ£o. AtĆ© porque na altura tinha uma coisa bem mais importante para perceber. O que se fazia com uma carta! AntĆ³nio pode nĆ£o se ter apercebido dessa e de outras noticias. Mas isso nĆ£o quer dizer que AntĆ³nio nĆ£o quisesse saber dessas e de outras coisas. Para o AntĆ³nio as questƵes das provas eram muito importantes. E nĆ£o estou a falar das provas globais. Essas tambĆ©m haveria de ser um problema. Mas AntĆ³nio tinha problemas bem maiores do que esses. Ɖ como se as provas globais existissem desde sempre. Mas AntĆ³nio nĆ£o se manifestou como alguns desses alunos se manifestaram em 1994. AtĆ© porque AntĆ³nio nĆ£o percebia muito bem o que Ć© que podia ser alcanƧado se fosse feito essa manifestaĆ§Ć£o. Para alĆ©m de outras dificuldades que sentia que lhe causavam iguais dificuldades, tal como estar no meio de tantas pessoas e com aquele barulho todo. Nunca tinham explicado ao AntĆ³nio que para participar numa manifestaĆ§Ć£o podia ter todo um conjunto de cuidados para poder participar de forma mais adequada Ć s suas necessidades. AntĆ³nio sĆ³ descobriu isso por volta dos trinta anos. Mais precisamente com vinte e nova anos em 2012. Na altura a troika tinha entrado no nosso paĆ­s e as coisas tinham ficado mais insustentĆ”veis. Para o AntĆ³nio, os pais, irmĆ£os, colegas e muitas outras pessoas. Nasci e cresci num pais que ainda hoje nĆ£o tem um polĆ­tica capaz e que respeita as pessoas com deficiĆŖncia, diz AntĆ³nio. Nessa altura tinha um pequeno grupo de amigos. Todos eles tal como eu tĆ­nhamos um diagnĆ³stico de SĆ­ndrome de Asperger. Na altura ainda era esse o nome usado, refere. TĆ­nhamos decidido que irĆ­amos participar na manifestaĆ§Ć£o. E todos sabĆ­amos o que fazer para poder participar. Os fones com cancelamento de ruĆ­do era imperativo, refere. A Luisa (nome ficitico), a minha namorada na altura nĆ£o tinha dinheiro para comprar uns e entĆ£o usamos Ć  vez os meus, diz. Participamos na manifestaĆ§Ć£o porque tĆ­nhamos decidido que nĆ£o haviam polĆ­ticas eficazes para as pessoas como nĆ³s. TĆ­nhamos todos passado dos vinte anos de idade. A LuĆ­sa tinha na altura vinte e quatro. O Amadeu (nome fictĆ­cio) tinha trinta e trĆŖs. O Carlos (nome fictĆ­cio) vinte e nove e a Lurdes (nome fictĆ­cio) quarenta e trĆŖs.


Hoje estamos em 2022. Estamos todos mais velhos. Eu jĆ” fiz vĆ”rias cartas para alguns responsĆ”veis polĆ­ticos a reclamar pela necessidade de mais e melhores polĆ­ticas para pessoas como eu, diz AntĆ³nio. Eu jĆ” sei como fazer cartas e da importĆ¢ncia das mesmas, conclui. Mas nĆ£o obtive grandes respostas. Algumas delas nem recebi qualquer resposta. Nem todas enviei como cartas regista e com aviso de recepĆ§Ć£o. Aprendi isso mais tarde. Pensei que bastaria enviar uma carta que as outras pessoas responderiam. Pelo vistos enganei-me. Mas aprendi e passei a fazĆŖ-lo. Mas nem por isso todos me responderam. O que me levou a aprender que as pessoas mentem e nĆ£o honram os seus compromissos. AtĆ© mesmo aqueles que estĆ£o descritos na legislaĆ§Ć£o. O Amadeu procurou essa informaĆ§Ć£o. AtĆ© porque Ć© licenciado em Direito. Mas independentemente daqueles que responderam ou nĆ£o, o certo Ć© que estamos em 2022 e muita coisa continua igual para pessoas como eu, refere AntĆ³nio. Todos nĆ³s, excepto a Luisa, continuamos a viver em casa dos pais. Eu e a Luisa jĆ” nĆ£o namoramos mas continuamos como amigos. A LuĆ­sa foi trabalhar para uma multinacional e estĆ” neste momento a viver em Inglaterra. Pelo que ela diz algumas coisas sĆ£o diferentes. NĆ£o todas, mas algumas importante para si sĆ£o diferentes. Por exemplo, a habitaĆ§Ć£o prĆ³pria e o emprego. SĆ£o dois aspectos que a Luisa diz que sĆ£o fundamentais para a sua vida, conclui.


NĆ£o me arrependo de ter participado na manifestaĆ§Ć£o em 2012, diz AntĆ³nio. Gostaria de poder ter participado em mais. Se me tivessem ensinado a fazer manifestaƧƵes tal como me ensinaram a fazer cartas, eu teria feito mais pela minha condiĆ§Ć£o, refere. E nĆ£o sou o Ćŗnico a pensar desta forma. Todos os meus amigos passaram por situaƧƵes semelhantes e sentem o mesmo. NĆ£o podemos estar apenas no modo sobrevivĆŖncia, adverte. NĆ£o podemos andar sempre a apagar fogos, seja na escola, na sala de aula ou no recreio, a fugir deste ou daquele colega, ou daquele professor que nĆ£o nos compreende. NĆ£o podemos andar sempre a ser enxotados para este e outros canto e andar a pedir por favor que nos oiƧam. Temos voz e temos direito Ć  nossa voz. E nĆ£o temos de ter vergonha do tom da nossa voz, seja ela monocĆ³rdica ou pareƧa um qualquer desenho animado conhecido. NĆ£o temos de ter vergonha da nossa pessoa. Mas tambĆ©m precisamos que as pessoas que estĆ£o connosco acreditem em nĆ³s. E nos possam explicar o que Ć© isto e aquilo ou como se fazem determinadas coisas. Principalmente se pedirmos ou se estivermos confusos. Mas para explicar nĆ£o precisam de ser paternalistas ou condescendentes. E principalmente, Ć© fundamental que possam fazer com que tenhamos a liberdade de nos manifestarmos, seja por carta ou manifestaĆ§Ć£o. Podia ler-se no final da carta do AntĆ³nio. No principio lia-se Carta a um/a jovem.


NĆ£o Ć© novidade nenhuma a participaĆ§Ć£o de jovens em manifestaƧƵes pelos direitos humanos e civis. Por exemplo, na AmĆ©rica de 1965 eram vĆ”rias as situaƧƵes em que os jovens se envolviam em movimentos pela luta dos direitos de voto e civis. E no inicio dos anos 60, o movimento jovem contra a participaĆ§Ć£o dos EUA na guerra do Vietname fazia-se ouvir. E alguns anos mais tarde, em junho de 1989 um movimento jovem insurgia-se na China. Movimento este que acabou por ficar conhecido pelo facto dos militares terem aberto fogo sobre os manifestantes desarmados na PraƧa Tianammem. E tambĆ©m em 1989 com a queda do muro de Berlim, assistimos a uma movimentaĆ§Ć£o dos jovens pelos direitos que viam sistematicamente a serem esquecidos em detrimento de uma polĆ­tica feita por e para pessoas adultas.


Uns anos mais tarde, jĆ” em 2010 surge um outro movimento criado nas redes sociais do Twitter e do Facebook, que havia de ficar conhecido por Primavera Ɓrabe. Seja por questƵes de direitos civis e raciais, como o exemplo recente dos protestos pelo assassinato de George Floyd. Ou a marcha em Washington anos mais tarde por razƵes semelhantes. Ou o movimento de libertaĆ§Ć£o na India encabeƧado por Mahatma Gandhi em 1930. E em 1950 emĀ Ćfrica do Sul uns anos mais tarde, jĆ” em 2010 surge um outro movimento criado nas redes sociais do Twitter e do Facebook, que havia de ficar conhecido por Primavera Ɓrabe. Seja por questƵes de direitos civis e raciais, como o exemplo recente dos protestos pelo assassinato de George Floyd. Ou a marcha em Washington anos mais tarde por razƵes semelhantes. Ou o movimento de libertaĆ§Ć£o na India encabeƧado por Mahatma Gandhi em 1930. E em 1950 em Africa do Sul no combate ao Apartheid. E os primĆ³rdios das manifestaƧƵes de determinados grupos podem assentar na Reforma Protestante em 1517 ou a RevoluĆ§Ć£o Francesa em 1789.


Mais recentemente temos assistido a movimentos jovens criados para lutar pelas questƵes ambientais, direito das mulheres, Ć  ciĆŖncia e outros aspectos fundamentais que sentem fazer sentido na vida de todos.


Na verdade, a participaĆ§Ć£o cĆ­vica dos jovens nem sempre foi uma realidade. E principalmente pela forma como estes foram sendo considerados ao longo da histĆ³ria da humanidade. Numa realidade assim nĆ£o tĆ£o longĆ­nqua, o conceito de jovens nĆ£o existia. Sendo que se passava de crianƧas imediatamente para a vida adulta. A palavra adolescente, apesar de ter surgido no sĆ©culo XV, apenas em 1904 Ć© que surge num discurso do presidente da American Psychological Association. As mudanƧas operadas no decorrer do sĆ©culo XX, no que diz respeito aos direitos das crianƧas, legislaĆ§Ć£o para combater o trabalho infantil e a importĆ¢ncia dada Ć  escolaridade. Estes e outros temas foram sendo cada vez mais importantes para proteger os jovens a nĆ­vel mundial. E poder criar condiƧƵes para que estes pudessem fazer um processo de transiĆ§Ć£o para a vida adulta de forma adequada e em respeito pelos seus direitos.


As pessoas com deficiĆŖncia, e no caso especifico das pessoas autistas, Ć© importante que possa ser pensado desde sempre, a importĆ¢ncia do empoderamento destes ao longo da vida, e quanto mais precoce melhor. E se pensarmos que a adolescĆŖncia Ć© um perĆ­odo fundamental para a exploraĆ§Ć£o da independĆŖncia e da construĆ§Ć£o de uma noĆ§Ć£o do Self. A formaĆ§Ć£o da identidade ocupa um perĆ­odo grande e importante da vida da pessoa e pode levar ao desencadear de crises de identidade, principalmente quando este perĆ­odo Ć© desapoiado ou nĆ£o apoiado de forma adequada Ć  pessoa. Se atendermos ao facto de que este perĆ­odo da adolescĆŖncia antecede imediatamente o perĆ­odo maior da vida da pessoa - a vida adulta. SerĆ” necessĆ”rio verificar que o processo de autonomia e independĆŖncia. Assim como a prĆ³pria auto-representaĆ§Ć£o e dignidade da pessoa que em muito fica ameaƧada, nĆ£o sendo possĆ­vel a pessoa autista ter responsabilidade nas escolhas da sua vida, nĆ£o devido Ć  sua condiĆ§Ć£o e respectivas caracterĆ­sticas. Mas principalmente porque durante o tempo de vida anterior em momento algum a pessoa foi sendo preparada para tal.


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