Autismo amarelo
- pedrorodrigues

- 2 de set.
- 3 min de leitura
Setembro chega com a sua paleta de amarelos. As folhas mudam, os dias encurtam, e no calendário erguem-se campanhas que nos convocam a olhar de frente para realidades difíceis de nomear. Setembro Amarelo é mais do que uma cor: é um chamado para falar de suicídio, saúde mental e da importância de pedir ajuda antes que o silêncio se torne irreversível.
No entanto, quando pensamos em saúde mental, nem sempre lembramos todas as vozes. As pessoas autistas, muitas vezes invisíveis nas campanhas e nas estatísticas gerais, vivem uma realidade marcada por riscos acrescidos. Não existe um “autismo amarelo”, mas existe uma urgência gritante em reconhecer que as taxas de suicídio e automutilação nesta população são alarmantemente elevadas.
O peso dos números
Estudos recentes são claros: jovens autistas com menos de 25 anos têm pelo menos o dobro da probabilidade de morrer por suicídio em comparação com os seus pares não autistas. Até um em cada três relata comportamentos de automutilação ao longo da vida e um em cada quatro reconhece ter vivido ideias suicidas. Ao contrário do que acontece noutras populações, estas taxas apresentam-se semelhantes entre homens e mulheres autistas, o que revela que a vulnerabilidade atravessa géneros e contextos.
Mas os números, por si só, não falam. Precisamos de lhes dar voz.
“Eu tinha 14 anos quando comecei a magoar-me. Não queria morrer, queria parar de sentir. Os cortes eram como uma pausa breve no turbilhão de pensamentos. Quando finalmente disse a um médico, ele respondeu que era apenas uma fase da adolescência. Nunca me senti tão sozinho.”
As raízes do sofrimento
As causas são complexas, entrelaçando fatores individuais, relacionais e sistémicos. Depressão, ansiedade, vitimização por bullying, adversidades precoces e solidão prolongada são experiências relatadas com frequência por jovens autistas. Cada uma delas constitui, por si só, um fator de risco para suicídio. Somadas, criam um terreno fértil para o desespero.
“Na escola, passava os intervalos sozinho, sentado num canto. Tentava aproximar-me, mas nunca sabia como. Os colegas riam-se da forma como falava, das minhas rotinas, do meu olhar. A cada risada, a cada exclusão, sentia-me mais invisível. Aos 17 anos, pensei que não tinha futuro. Foi a primeira vez que tentei suicidar-me.”
As barreiras no acesso a cuidados
Mesmo quando procuram ajuda, muitos jovens autistas enfrentam obstáculos quase intransponíveis. Serviços que não compreendem a comunicação literal, profissionais sem formação específica, ambientes clínicos desajustados, falta de tempo para criar confiança. A estes fatores somam-se barreiras universais: longas listas de espera, custos elevados, escassez de recursos humanos.
“Procurei apoio na universidade. A psicóloga falava em metáforas, em imagens poéticas, e eu ficava perdida. Saía das sessões a sentir que era eu que não conseguia compreender. Só mais tarde percebi que o problema não era meu, era do modelo de apoio que não estava feito para mim.”
A vida adulta também pesa
O risco não desaparece com a entrada na idade adulta. Muitos autistas enfrentam desemprego, precariedade, isolamento social e falta de redes de apoio. Estes fatores reforçam sentimentos de desesperança e intensificam ideação suicida.
“Aos 30 anos, tinha já passado por três empregos. Todos acabaram da mesma forma: não conseguia lidar com a pressão social, com as mudanças constantes, com a falta de clareza. Sentia-me um fracasso. As noites eram longas, cheias de pensamentos sobre como seria mais fácil desaparecer.”
Vozes silenciadas, urgência de mudança
Apesar da gravidade destes dados e testemunhos, os jovens autistas permanecem sub-representados na investigação e nas políticas públicas. Faltam estudos longitudinais, programas de prevenção adaptados, serviços com formação específica. Faltam profissionais preparados para reconhecer que a comunicação e a experiência emocional de uma pessoa autista podem exigir outra forma de cuidado.
“Quando finalmente encontrei uma terapeuta que falava de forma clara, sem julgamentos, senti-me compreendido pela primeira vez. Não precisava que me dissessem que tudo ia ficar bem. Precisava apenas que alguém me ajudasse a organizar o caos dentro de mim. Foi isso que me manteve vivo.”
O sentido de Setembro Amarelo
Setembro Amarelo é, pois, um lembrete de que falar de suicídio não é falar de morte, mas de vida. É afirmar que pedir ajuda não é fraqueza, é coragem. No caso das pessoas autistas, é também reconhecer a necessidade urgente de serviços mais inclusivos, de políticas públicas que reduzam barreiras, de uma sociedade que saiba acolher a diferença.
A cor amarela pode ser alerta, mas também pode ser luz. Que este setembro nos convoque não apenas a ver os números, mas a escutar as vozes. E que cada voz escutada seja uma possibilidade de futuro preservada.




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