Elvira (nome fictício) ou Vira como é conhecida lá no bairro tem 56 anos. Tem tido ultimamente umas dores nas costas. Nada comparado com as dores das vida, mas ainda assim incómodas. Nunca se tinha queixado apesar da sua postura ao andar estar cada vez mais evidente de se passar qualquer coisa de errado. As pessoas lá no bairro olhavam-na de lado. Mas isso sempre tinha sido assim, e como tal Elvira ou Vira como a chamavam do fundo da rua a gozar com ela, nunca tinha reparado. Nem as dores que aquilo tudo aparentemente lhe causava. De acordo com a acupuntora a que Elvira foi depois de muita insistência da sua filha, ela nem deveria ser capaz de se levantar, quanto mais fazer tudo aquilo que fazia no seu quotidiano. Vim aqui apenas porque a minha filha me obrigou!, disse Elvira assim que entrou no gabinete da acunputora. Do outro lado ouviu um bom dia sereno e um sorriso. Sinais que aparentemente a Elvira não terá prestado atenção. Digo aparentemente porque em muitas situações Elvira não só dá conta dos sinais como também os memoriza em quantidades infindáveis ao longo dos anos. Ainda recorda a expressão que a sua mãe fez quando Elvira disse que ia ter uma filha. Lembra-se da expressão e daquilo que a mãe lhe disse - Não sabes cuidar de ti quanto mais de uma criança! E ainda por cima te deixaste engravidar por aquele desgraçado ainda pior do que tu e que se foi embora ao primeiro sinal de trabalho! Eu nem acredito muito destas coisas chinesas!, continuou Elvira. Espero que possa acreditar em mim nesse caso, disse-lhe a acunputora. Não percebi!?, respondeu rapidamente Elvira. O que quer dizer com isso de ter de acreditar em si?, continuou com as perguntas. E caso não acredite em si, o que acontece? É que esta coisa de acreditar não é como as pessoas dizem ou querem-nos fazer acreditar!, concluiu Elvira. Já alguma vez consultou um acunputor?, perguntou-lhe procurando fazer conversa. Se já tivesse não tinha vindo aqui, mas teria ido a esse outro sitio!, remata de forma imediata Elvira. Quer falar-me das suas dores?, pediu-lhe. Pela primeira vez Elvira levantou a cabeça para olhar para ela. Parecia quase que lhe queria falar das dores da sua vida e não daquelas que carregava nas costas, literalmente. Não sei como falar das minhas dores!, respondeu-lhe em vez disso. Deite-se na marquesa de barriga para baixo, disse-lhe a acunputora. Ao que Elvira obedeceu imediatamente. Primeiro tem de se despir da cintura para cima, disse-lhe a acunputora. Como não tinha dito nada antes!, retorquiu Elvira. Assim que as mãos da acunputora tocaram na pele das costas de Elvira, estas começaram logo a falar. Mais e diferente daquilo que a própria Elvira conseguia no momento fazer. A sua pele arrepiou-se imediatamente. O seu corpo parecia estar a responder como se nunca tivesse sido tocado. Elvira parecia estar a sentir um misto de nojo e prazer por tudo aquilo que estava a sentir. Começou por ficar irrequieta e ao fim de muito pouco tempo levantou-se bruscamente. Isto é muito difícil para mim, não sei se consigo!, disse-lhe. Não gosto que me toquem!, continuou Elvira, ainda que quando se levantou da marquesa não tenha sequer tido necessidade de cobrir o seu peito. Elvira pode vestir-se para nós conversarmos um pouco?, pediu-lhe a acunputora. Aquilo que esta estava para lhe dizer estava prestes a mudar a vida de Elvira, e a acunputura sabia-o. Até porque já lhe tinha acontecido com outras pessoas. Elvira parecia apresentar algumas características de uma mulher com Perturbação do Espectro do Autismo. Quando a acunputora lhe falou sobre isso Elivira ouviu-a com toda a atenção possível. Até porque nunca alguém tinha parado para se sentar com ela e ouvi-la sem julgar ou perguntar porque é que aquilo tudo tinha acontecido. Nem o pai da sua filha, que esse nunca mais lhe soube nada, a não ser pelo feitio da filha que o fazia lembrar todos os dias. Não estranho que me diga que possa ter ou ser alguma coisa!, diz-lhe Elvira. Nunca tive nada na vida, a não ser dor e sofrimento. E quanto ao que eu sou, ainda hoje não o sei, concluiu Elvira. Toda a vida fui Elvira, mais precisamente Vira, como sempre me chamaram. Nunca tive hipótese sequer de dizer se gostava ou não, era assim, como em quase tudo na minha vida. Fosse em casa ou na escola, pelo menos enquanto por lá andei. Diziam que tinha de fazer assim e pouco mais. Eu obedecia e o que não sabia apanhava. Quando fui para a escola pensei que estaria a salvo de apanhar. Mas na verdade isso não aconteceu. Até de professores apanhei. E quando me perguntavam quem é que eu pensava que era para dizer ou fazer aquilo eu encolhia os ombros. Chamavam-me Vira porque eu podia mudar rapidamente de humor. Só percebi isso mais tarde e da pior maneira. Eu não queria ter feito aquilo mas ela não parava de me chamar nomes. Eu disse-lhe para parar várias vezes. As pessoas estavam todas ali a gritar. Eu não conseguia ver sequer. Tinha a visão toda nublada. E estiquei os braços para a frente. Apenas queria que ela parasse. Mas ela caiu. Lembro-me apenas que a seguir se fez um silêncio. E a seguir as pessoas começaram a agarrar-me. Não percebi nada do que se estava a passar. Perguntei onde estava a Mafalda (nome fictício). Apenas ouvi alguém dizer que ela tinha morrido. Não me consegui mexer mais. Levaram-me. Eu não ofereci resistência, afinal tinha morto uma pessoa. Estive assim dias no hospital internada. Não me mexia. Não dizia nada. Deixei de comer. Apenas seis meses mais tarde descobri que afinal a Mafalda não tinha morrido. Ela caiu e desmaiou. Aquilo tudo ainda me deixou pior, disse Elvira à acunputora. Elvira guardou no bolso o contacto do psicólogo a quem deveria ligar. Nunca fui a um psicólogo, dizia Elvira já na rua a caminho para casa. Na verdade também nunca tinha ido a uma acunputora e ela ajudou-me, disse esgueirando um sorriso e continuou o caminho já um pouco mais aliviada das costas, literalmente e não só. Não sei o que é o autismo, questionou-se! Mas também há tanta outra coisa na vida que não sei e não foi por isso que fui vivendo, disse entre dentes. Talvez assim faça me faça mais sentido, suspirou. Saber quem eu sou e no caminho logo haverei de saber do autismo, disse-o para dentro.
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