Só percebi o que se tinha passado anos mais tarde, diz Rafaela (nome fictício). Já me perguntaram o que é que eu senti em relação ao que aconteceu. Não faço ideia, diz. Mas também há muitas outras coisas que não tenho ideia. Há muita coisa que pode ser pensada sobre as coisas, certo?, pergunta-me. Agora eu consigo pensar racionalmente que aquilo que o meu pai fez não devia ter feito. Mas isso não altera em nada o que aconteceu, refere. O seu rosto não se alterou em nada desde o inicio da conversa. As mãos estavam assentes sobre os seus joelhos sem se mexer. Ao fim de algum tempo contei à minha mãe. Ela não quis saber. Pareceu ficar zangada comigo. Nunca mais quis falar sobre o assunto. E eu também não, até hoje. O meu companheiro disse que seria importante falar disso consigo na consulta. Ele acha que isso é importante e que eu preciso de falar sobre isso. Não compreendo o que ele quer dizer com isso, mas optei por o fazer, concluiu. A Rafaela foi abusada sexualmente pelo pai durante sete anos.
Tenho uma coisa para lhe dizer, disse a mãe da Madalena (nome fictício). Nem sei por onde começar. A minha filha foi abusada sexualmente na escola no outono passado. As lágrimas caiam-lhe pelo rosto. A vergonha transparecia por toda ela. Eu sei que devia ter feito alguma coisa, dizia entre o choro. Eu sei que devia ter apresentado queixa, continua. Quando soube disso já tinham passado alguns dias. A Madalena queixava-se de um certo desconforto e não me sabia explicar melhor. Nem sei como lhe conseguir arrancar as coisas. Ela não me diz nada e muitas vezes também não conta as coisas de uma forma que eu compreenda. Quando lhe perguntei o que ela tinha dito na altura ao rapaz, ela respondeu-me que não lhe tinha dito nada. Ficou parada. Depois levantou-se e foi para as aulas e esteve lá o resto do dia inteiro com aulas. Naquele preciso dia lembro-me que era dia de aula de natação e ela foi e não me disse nada. E eu que sou a própria mãe dela não me apercebi de nada, disse-o novamente lavada em lágrimas. Nem sei como abordar isto com a Madalena. Ela tem autismo. Penso que se insistir para falar disto com ela ela vai ficar traumatizada. O que acha?, pergunta-me. Não sei o que fazer!
Estou a trabalhar com uma cliente que sofreu violência sexual na relação. Ao fim de muito pouco tempo depois descobri também que ela tem um diagnóstico de autismo. Achas que me podes ajudar a tentar compreender a experiência que ela pode ter tido com esta experiência traumática?, dizia na mensagem que recebi um destes dias de um colega.
Não compreendo as pessoas, disse-me de rompante Joana (nome fictício). Mas ainda menos compreendo os homens, remata logo de seguida. Será que não compreendem que por eu estar a conversar com eles, isso não quer dizer que eu quero ir para a cama com eles?, pergunta-me. Eu sei que sou autista. E que devido a isso tenho determinadas características que faz com que seja mais difícil para mim compreender determinadas pistas sociais. Mas ainda assim, a relação e o diálogo é constituído por duas pessoas, certo?, pergunta-me novamente Joana. Ainda por cima se ele não é autista, não devia ter a capacidade de compreender melhor as coisas? E não devia saber que se eu não estou a compreender as coisas não devia continuar a avançar? E fazer uma coisa que eu não quero fazer?, continua a disparar perguntas. Isto acontece-me desde sempre. Eu tenho neste momento 43 anos. A minha primeira vez foi aos 16 anos. A minha primeira relação sexual foi aos 24 anos. Aos 16 fui violada. E quando falo disso nunca refiro que foi a minha primeira relação sexual. Eu não sei o que chamar ao que aconteceu. Mas consigo dizer que não foi a mesma coisa que aconteceu aos 24 anos. Isso eu consigo dizer, refere Joana.
A Rafaela, a Madalena e a Joana são mulheres autistas. E como elas há muitas mais raparigas e mulheres autistas que são vitimas de abuso sexual. A Perturbação do Espectro do Autismo é uma condição que leva a que as pessoas possam estar mais desprotegidas para todo um conjunto de acontecimentos e vivências traumáticas, nomeadamente abuso sexual. A dificuldade em conseguir ler as pistas sociais nas outras pessoas, a ingenuidade e acreditarem que aquilo que os outros estão a dizer é sempre verdade e que ninguém iria fazer nada para magoar. O próprio anseio e desejo em ser aceite pelas outras pessoas ou até mesmo os comportamentos de camuflagem social e imitarem os comportamentos das suas colegas independentemente de não terem total consciência da situação. A grande dificuldade em muitas situações para dizerem NÃO. Até porque não sabem o que pode acontecer se o disserem. O que a outra pessoa poderá dizer ou perguntar e por isso acabam por ficar em silêncio. Estas e outras situações levam a que muitas raparigas e mulheres autistas estejam em situação de desprotecção. Além disso é importante frisar que o abuso sexual acontece não por culpa dela e do seu comportamento. Mas sim porque a outra pessoa, frequentemente um homem não respeitou a pessoa. Ou manipulou-a e decidiu de forma premeditada aproveitar-se da fragilidade aparente. E independentemente destas raparigas e mulheres poderem apresentar um afecto neutro em relação a estes episódios, isto não significa que a situação não foi traumática. A situação vivida foi muito traumática e a pessoa autista precisa de ser ajudada a elaborar emocional esta experiência. Mas também ser ajudada a compreender e reconhecer os riscos, compreender as relações, nomeadamente as relações intimas. E é fundamental denunciar as situação e apresentar queixa destes episódios.
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