Aquilo que a minha cliente está a dizer faz-me lembrar de um artigo que li sobre o espectro do autismo! pensa o psicólogo. As descrições das queixas deste meu cliente parecem enquadrar-se no espectro do autismo, ainda que não tenha certeza! pensa a psicóloga.
Não se pense que os psicólogos não têm questões, dúvidas e até mesmo receios, porque o têm! E sim, isto também se aplica quando recebemos certos pedidos de consulta e que por diversas razões podem afigurar-se como situações clínicas mais desafiantes. Mas o certo é que as pessoas necessitam de ajuda e de uma resposta às suas questões.
Olá, como estás? Preciso da tua ajuda. Penso que tenho uma pessoa na consulta que pode ser do espectro do autismo. Preciso de falar contigo para saber o que fazer! dizia na mensagem recebida de um amigo e colega de profissão.
Após uma breve conversa inicial com este meu colega, surge a questão da heterogeneidade presente no autismo. E sendo que este é um facto, referi que a heterogeneidade é no autismo como fora do autismo. Ou seja, cada vez menos encontramos pessoas na clínica em que a sua situação se enquadra única e exclusivamente num só diagnóstico. E cada vez mais verificamos que a presença de outros diagnósticos em comorbilidade ou traços de outras condições é mais frequente. E isto principalmente para ajudar a desmobilizar algumas resistências face ao autismo, à complexidade deste diagnóstico e dos desafios que podem estar a ser antecipados. Por vezes, os profissionais poderão sentir-se imersos naquilo que se ouve falar acerca da variabilidade presente no autismo. Como se esta variabilidade no autismo fosse sinónimo de não se conseguir saber ou perceber o que é o autismo. E quando parece haver uma maior centração neste aspecto podemos correr o risco de nos desviarmos da pessoa, da sua identidade.
Assim, quando estiver a falar com um cliente e se perguntar se ele é autista, não procure apenas observar os comportamentos ou as dificuldades. Procure não ficar cingido ao autismo numa perspectiva categorial. Ainda que seja compreensível atendendo à própria pressão que os manuais de diagnóstico e não só causam. Pergunte sobre as experiências. Isso mesmo, pergunte para a pessoa lhe falar sobre como e o que têm sido as suas experiências ao longo da vida e em determinados momentos específicos. Se deseja conhecer o autismo por dentro, faça-o principalmente através da escuta da própria experiência das pessoas autistas, da forma como eles vivem a sua vida e fazem as suas tomadas de decisão. Ou então procure simplesmente escutar aquilo que as pessoas autistas dizem quando partilham as suas experiências e forma de compreender o mundo e a si mesmo nas redes sociais. Desta forma estará mais capaz de progredir para além dos estereótipos e saberá quais as perguntas certas a fazer. E principalmente estará a criar um espaço seguro para a pessoa autista.
Nos últimos anos, seja porque a própria comunidade autista se tem transformado e passado também a ser maioritariamente constituída por pessoas autistas, e não somente pais e profissionais de saúde interessados. O certo é que tem havido um lobbie da comunidade autista que tem procurado chamar a atenção da comunidade clínica e de investigação para outros aspectos igualmente importantes. E a comunidade clínica e de investigação, também ela própria tem procurado reflectir e evoluir acerca das questões a colocar e dos próprios métodos de intervenção e investigação a usar. É disso exemplo a maior variedade de programas de intervenção que não se centram exclusivamente no modelo ABA ou nos modelos Comportamentais e Cognitivos (CBT). Mas também na investigação, em que os desenhos de investigação têm sido cada vez mais qualitativos, ou os próprios instrumentos de usados para o rastreio e diagnóstico parecem reflectir mais e melhor a realidade das pessoas autistas, nomeadamente na vida adulta.
Além destes aspectos, os estudos epidemiológicos realizados, têm demonstrado uma maior prevalência de casos de Perturbação do Espectro do Autismo. O que não quer significar que os casos de autismo estejam a aumentar como já tem sido perguntado. A alteração nos critérios de diagnóstico, maior fiabilidade dos instrumentos de diagnóstico, sensibilização da comunidade clínica e da Sociedade, entre outros. Todos eles têm contribuído significativamente para os resultados encontrados. Um em cada cinquenta e quatro casos apresenta um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. E como as pessoas adultas estão cada vez mais informadas e sensibilizadas, têm elas próprias procurado uma resposta de intervenção para as suas situações clínicas e necessidades. E também por isso, os diferentes profissionais de saúde têm recebido cada vez mais pedidos desta natureza, seja para avaliar/diagnosticar, mas também para intervir. E atendendo a que nos diferentes países, ainda que com realidades diferentes, o sistema de saúde público tem demonstrado pouca capacidade de resposta na avaliação/diagnóstico mas também na intervenção.
Mas não é apenas estes aspectos que têm mudado. Atendendo a que cada vez mais as próprias pessoas autistas, sejam diagnosticadas formalmente ou autoidentificadas como tal, estão mais exigentes em relação às respostas de intervenção. E eu digo - Ainda bem! Ou seja, as pessoas autistas já não querem somente uma mudança de determinados comportamentos, ainda que em determinados aspectos seja importante. Já não querem somente ser mais funcionais. Cada vez mais pessoas autistas advogam que para si não tem mal nenhum ser autista. E que muito pelo contrário sentem orgulho em sê-lo. E como tal não procuram a psicoterapia para a mudança, mas sim para a compreensão, o que na verdade também leva necessariamente a uma mudança.
Mas então, quais são as pistas que poderia ajudar a alertar este meu colega para a possibilidade deste seu cliente poder ser autista?
No caso desta pessoa ser jovem ou adulto, não assuma que a pessoa não tenha conhecimento acerca do autismo. Um número significativo de pessoas que suspeitem estar no espectro do autismo e procuram esta avaliação ou até mesmo acompanhamento já procuraram informação sobre o diagnóstico e também sobre a própria intervenção. E como tal, poder ser importante não fazer as questões ancoradas naquilo que são os principais critérios de diagnóstico e que estão em muito presentes nos questionários de rastreio, tal como o Questionário do Quociente Autista (QA). E muitas destas pessoas já preencheram online este e outros questionários. Por isso, talvez seja uma boa opção não perguntar se estão fascinados por datas ou se preferem ir a uma biblioteca do que a uma festa. Ou se são mais apegados às coisas do que às pessoas. Poderá ouvir o seu cliente falar de sensibilidade sensorial (e.g., sons, cheiros, roupas arranhadas, luzes brilhantes). Ou podem procurar determinados estímulos sensoriais (e.g., tecidos macios, cobertores pesados, água fria). Podem ter uma sensação consistente de diferença, que pode ser traçada desde a infância. Podem comentar a sua lenta velocidade de processamento, apesar do facto de terem uma inteligência média ou elevada, ou referir-se à percepção do mundo como desconcertante, ou a mal-entendidos consistentes.
Podem estar conscientes de que "serem eles próprios" é frequentemente desastroso, por isso sentem-se constantemente a mascarar, camuflar, imitar os outros a fim de olharem ou se comportarem "correctamente". Podem notar uma tendência para ver detalhes e não o todo. Têm quase de certeza um foco intenso em interesses específicos e que podem variar num leque bastante variado. Muitas pessoas autistas têm problemas na escola ou no trabalho e que se prende com o seu perfil, mas também com o desconhecimento das pessoas no contexto em relação a este mesmo perfil e o que é o autismo.
A ideia a passar é que a Perturbação do Espectro do Autismo necessita de ser olhada para além dos critérios de diagnóstico presentes nos manuais de diagnóstico. Estes são importantes, mas não são apenas estes que importam. Até porque os mesmos, tal qual estão, levam a não considerar parte fundamental do espectro do autismo. Além de não reflectirem de todo aquilo que é o fenótipo existente no feminino. Também é necessário relembrar que apesar de falarmos de pessoas autistas ou que procuram o diagnóstico são pessoas. Parece estranho ter de relembrar isto, mas parece-me fundamental. Até porque algumas das propostas de intervenção parecem olhar para a pessoa autista como estando compartimentalizada em comportamentos e que estes se procuram objectivar e mudar. Como se a identidade da própria pessoa não fosse fundamental e basilar em todo o processo. Haverei de voltar a este tema, até porque as alterações em todos os intervenientes e no processo psicoterapêutico em si vai tendo transformações.
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