Não quero falar sobre isso! Não vejo interesse. Não sei porque é que insistes em fazer essas perguntas! A minha avó morreu! António estava visivelmente transtornado. Os pais do António corroboram dizendo que nunca o tinham visto naquele estado. Ao ouvir o António recordei-me de algumas das minhas experiências pessoais relacionadas com a morte. Sentia não haver outra forma de ir ao encontro da experiência dele sem contactar com as minhas vivências. O António (nome fictício) tem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) e como já perceberam do texto anterior, a sua avó faleceu recentemente. O António tem 29 anos. Foi diagnosticado aos 14 anos, num período em que a sua vida se transformou bastante. Os seus pais tinham-se divorciado recentemente, e o António ia passar a estar em casas diferentes e além disso tinha mudado de escola. Foi todo um conjunto de acontecimentos que precipitaram um aumento da ansiedade sentida e dai o pedido de ajuda dos pais. As perdas, e principalmente as perdas porque originam necessariamente mudanças nas rotinas, levaram a uma maior dificuldade na resposta do António. Agora com a situação da morte da sua avó, os pais sentiram que ele voltou a ficar mais desorganizado e até mesmo com umas respostas aparentemente mais agressivas. Por exemplo, o pai procurou falar com o António dizendo que era importante ele desabafar. A avó que faleceu é paterna. O pai do António sente que também não tem estado bem. Inclusive um pouco menos disponível. Nesse episódio o pai sente que forçou mais do que era suposto a importância do filho desabafar sobre a morte da avó, e este reagiu de uma forma mais reactiva, facto que parece ter chocado o pai. A forma como nós vivemos o luto é moldado de acordo com as nossas expectativas familiares e culturais. Muito daquilo que aprendemos no processo de luto é uma resposta aprendida. Quantas vezes não ouvimos dizer de outros - É importante ires ao velório ou ao funeral para encerrares esse assunto! Da mesma forma que sentimos como expectável ouvir de alguém que se aproxime da pessoa em luto e dizer - Os meus sentimentos. Mas quando se fala do processo de luto nas pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo, é ainda hoje comum ouvirmos perguntar acerca da aparente insensibilidade em relação aos sentimentos do Outro, principalmente quando as pessoas neurotipicas dizem sentir ausência de uma resposta de tristeza nas pessoas com PEA. Por que é que o meu filho aprece ser tão insensível e incapaz de dar apoio emocional ou empatia aos outros nestas situações?, perguntou o pai do António. As pessoas autistas choram?, perguntou a mãe. A resposta a ambas as questões foram - Sim, as pessoas com PEA choram e não, a referida ausência de empatia não é intencional e faz parte da forma do próprio processar a informação. É fundamental podermos perceber que a forma como uma pessoa autista e não autista processa a informação é diferente. E isto também se aplica à forma como o processo de luto e do lidar com a morte ocorre. Por exemplo, se partimos do principio que uma situação de luto e perda é gerador de stress. Podemos ter a ideia de que este facto irá provocar uma resposta diferente e aumentada na pessoa com Perturbação do Espectro do Autismo, tal como ocorre com tantas outras situações geradoras de stress. É comum verificarmos que quando uma pessoa neurotipica se defronta com uma situação de choque, é comum que sinta a vontade em poder partilhar a situação com alguém. Nomeadamente porque sente a necessidade não só de partilha mas também para a procura de suporte emocional. Este é mais um exemplo de como as pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo costumam reagir de forma diferente, normalmente oposta. E se pensarmos no exemplo de uma situação especifica de velório ou de funeral, podemos pensar que é expectável pensar que as pessoas presentes irão poder dar uma palavra e/ou um gesto de conforto, nomeadamente um cumprimento/abraço. Se pensarmos naquilo que é a dificuldade de muitas das pessoas no Espectro do Autismo relativamente às hipersenbilidades sensoriais, sejam as tácteis mas também as auditivas. Estar presente nestes contextos pode ser extremamente difícil de suportar. Uma coisa é certa, as pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo sofrem, ainda que este processo possa ser diferente. Nos dias seguintes à avó do António ter falecido, o telefone não parava de tocar. As visitas a casa do António eram mais do que muitas. A sua avó era uma pessoa muito querida e António sabia-o muito bem. Era assim que o António a via. Mas a situação estava a tornar-se insustentável. Por duas ou três vezes o pai do António sentiu necessidade de o chamar à parte para dizer que não devia reagir daquela forma com os convidados. O António não gostou e referiu que aquelas pessoas não tinham nada de estar ali. O pai estava transtornado com a situação e não sabia como lidar com a situação. Disse ao António para ir passar uns tempos na casa da mãe. O António não estava a perceber nada da situação e de porque é que teria de ir para casa da mãe quando era a semana de estar com o pai. Tudo parecia estar ao contrário na sua vida. O falecimento de alguém próximo costuma trazer alterações na nossa vida, seja aquelas sentidas internamente, mas também ao nível do nosso quotidiano. Mas o António tinha uma maior dificuldade em lidar com essas alterações de hábitos e rotinas, e além disso também estava a sofrer por ter perdido a sua avó. Apesar de António saber do que se trata quando nos referimos à morte, ainda assim, esta era a primeira experiência próxima. A avalanche de sentimentos que António estava a sentir colocou-o numa situação única e inesperada da sua vida. Ele não estava a compreender grande parte dos sentimos e que nome lhes dar. Até porque o António estava habituado a se forcar na resolução de problemas e não no que estava a sentir. Foi assim que aprendeu e foi assim que foi conseguindo lidar com alguns dos obstáculos de vida. Ainda que os sentimentos estivessem sempre lá. Mas como é que se resolve a morte pensarão alguns! E em parte por isso o António sentia que não queria falar da avó - não dava para resolver, e como tal não havia nada a falar. O sentir continuava lá, mas o António ainda não sabia o que fazer dele.
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