A transição, vista como a passagem de um lugar, assunto, ou estado para outro é algo primordial à vida humana. Até mesmo no período de gestação vão existindo transições e assim continua até ao fim da nossa vida. Mudamos de estabelecimentos escolares, ou de casa. Depois mudamos para a Universidade ou para um Emprego. E continuamos a mudar de empregos. Podemos mudar de local de residência, estado civil, hábitos, etc. Para algo que ocorre com tanta frequência podia ser algo que ocorresse com maior facilidade. Mas nem sempre nos é fácil mudar. Agora imaginem nas pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA).
As Perturbações do Espectro do Autismo (PEA) são uma condição do neurodesenvolvimento que ocorrem ao longo do ciclo de vida da pessoa. É possível de ser identificada a partir dos 18 meses de vida, apesar da maioria das situações ser identificada mais tarde. Vai sendo cada vez mais frequente identificar-se casos em jovens adultos ou já no adulto. Mas como em muitas outras situações nas PEA que nos suscitam dúvidas, a transição dos jovens com diagnóstico de PEA que são acompanhados em serviços de saúde mental e que atingem os 18 anos de idade é uma delas! O que se faz nestas situações? A pessoa deixa de apresentar as características para continuar a ser acompanhado em Pediatria mas não deixa de ter necessidade de uma resposta na área da saúde mental. E como tal como se faz?
Para além disso sabemos que há um conjunto de características que são próprias das pessoas com diagnóstico de PEA, seja as maiores dificuldades na interacção e comunicação social, comportamentos repetitivos e interesses restritos, mas também no encarar situações novas, imprevisíveis. Se há coisas que as pessoas com PEA prezam é previsibilidade, entre outras. Ter uma ideia mais exacta da forma como as coisas vão acontecer é importante para que se consigam pré programar para aquilo que necessitam de realizar. Saber de antemão o que pode ou não acontecer leva-os a ter a percepção de uma maior segurança e com isso a sua sintomatologia ansiosa está mais controlada. Saber quando vai ser o teste de matemática ou a visita de estudo ao Oceanário. Ou se no sábado é dia de visitar os avós e almoçar no determinado restaurante já conhecido transfere conforto para as pessoas com PEA e muito provavelmente para muitos de nós. Ainda que no caso das pessoas com PEA a ausência desta previsibildiade seja sentida como desorganizadora. Por isso é importante que pais e técnicos que os acompanham possam fornecer esta mesma possibilidade.
Voltando ao tema da questão inicial - o que fazemos quando os jovens que acompanhamos em saúde mental, seja enquanto psicólogos, pedopsiquiatras, neuropediatras, terapeutas da fala, psicomotricistas, etc. atingem a maioridade (18 anos). Por exemplo, já tenho tido casos de pessoas que procuraram a minha ajuda enquanto psicólogo e que têm um diagnóstico de PEA e que lhe foi referido que o serviço hospital que os acompanhava para a mesma condição já não conseguia continuar a dar uma resposta às suas necessidades visto que a pessoa já era considerado adulta. Uma resposta imediata que aparece na mente de algumas pessoas é - transferimos o caso clínico para a Psiquiatria de Adultos. Parece fácil, certo? E em parte deveria ser assim, fácil. Uma transição que levasse a que o jovem e a sua própria família fosse contactada por volta do 14 - 16 anos a referir que seria começado a tratar-se do seu processo de transição e que por volta dos 18 - 21 anos seria efectivado para um serviço de adultos competente para continuar a dar a resposta necessária. Mas as coisas não acontecem com essa facilidade. Nem em Portugal e também em outras partes do globo. E no caso das Perturbação do Espectro do Autismo a situação parece ser ainda mais complexa.
São várias as razões. Seja porque há uma dificuldade na própria articulação dos serviços de saúde mental dentro destas duas faixas etárias - infância/adolescência vs. adulto. E esta mesma dificuldade de articulação reflecte-se no próprio corpo clínico e na forma deles comunicarem uns com os outros. Mas porque também se têm um conjunto de crenças associadas às PEA e ao processo de transição. Seja porque é comum verificar que nas PEA um número significativo apresenta um déficit cognitivo e esta nova variável vem trazer uma dificuldade acrescida no processo. Ou porque se entende que o processo de transição deve funcionar como um processo administrativo quando na verdade é um processo normativo e que ocorre ao longo da vida. E neste caso confunde-se facilmente transição com transferência. Ou porque se pensa que terá de haver uma clinica especifica para realizar esta transferência e caso não existia se continua a acompanhar a pessoa ao logo da vida sem alteração de equipa técnica. Ou porque há dúvida em que idade é que deve ocorrer e como deve ser processado! Mas também porque os próprios com PEA sentem com grande dificuldade muitos dos processos de transição e mudar de técnico de referência ou até mesmo de local do serviço de saúde mental pode ser visto como muito difícil. As questões são muitas mas não devem ser as mesmas que nos devem fazer atrasar este processo.
Os custos para o próprio, sua família e sociedade em geral no caso de não haver um processo de transição adequado dos serviços de saúde mental infantil para a idade adulto é grande. Ou seja, quando este processo parece não funcionar o número de casos que desiste da continuidade do acompanhamento é maior. Muitas vezes é sentido pelos próprios pais e os próprios que parece já não haver mais nada a fazer e como tal não vale a pena a continuidade do acompanhamento. Ou então porque sentem que as respostas fornecidas parecem já não fazer sentido naquilo que se pretende que seja o projecto de vida do jovem adultos com PEA. Para além disso sabe-se que nas pessoas com PEA a existência de outras condições psiquiátricas associadas é grande. E neste caso é fundamental que a pessoa possa continuar a ser acompanhada também para o surgimento destas outras condições que em muito agravam o quadro clínico principalmente quando não são devidamente acompanhadas.
São várias as questões que necessitam de ser reflectidas. Os próprios aspectos da relação terapêutica que o técnico que acompanha a pessoa ao longo de quatro, cinco, seis ou mais anos durante a infância e a adolescência é importante ser pensado. Seja pela dificuldade sentida pelo técnico mas também pelo próprio jovem com PEA. Será que este técnico continuará a ser a melhor resposta para este jovem adulto e que se irá transformar em adulto com necessidades e dificuldades próprias desta nova etapa? A competência do técnico não está nunca posta em causa. Até porque devido à sua competência é que o jovem conseguir alcançar todo um conjunto de objectivos terapêuticos e outros. Mas é importante poder reflectir essas transformações na própria relação. Deixamos de passar determinada informação para os pais tal como era mais ou menos frequentemente feito durante a infância para poder contar mais com um trabalho individualizado junto do jovem adulto, ainda que a família continue a ser um aliado fundamental. O próprio adulto com PEA precisa de sentir-se mais autodeterminado no seu processe e projecto de vida e como tal necessita de um técnico que o acompanhe que considere também esse aspecto fundamental.
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