A verdade ocupa um papel central nas nossas vidas. Desde cedo, somos instruídos a dizer a verdade, e que uma pessoa boa procura dizer a verdade. E que a prática da verdade torna-nos uma pessoa boa. Estamos todos familiarizados com o juramento feito em tribunal para dizer a verdade, toda a verdade e nada além da verdade. Muitas pessoas passam a vida na procura incessante da verdade, do profundo ao mundano: um astrofísico tenta descobrir verdades sobre a natureza do universo, com a mesma intensidade que Hercule Poirot procura saber a verdade sobre o misterioso crime, tal como muitos de nós procuram diariamente saber onde estão as chaves de casa antes de fechar a porta. Como em muito na vida, há a coisa e o seu contrário. Neste caso, temos a verdade e o falso. Parece simples, mas não é. Até porque a compreensão do que é a verdade e a sua demonstração é uma tarefa complexa. Ainda assim, todo esta dinâmica sobre as noticias falsas (fake news) e a necessidade de as desconstruir e por conseguinte negar a sua veracidade tem sido uma batalha desgastante e com muitas vitimas, inclusive mortais, pelo caminho.
Será verdade? falso? não tem bem a certeza? Não é de agora que nos deparamos com estas e outras questões parecidas. Desde cedo na história da humanidade que esta questão preocupa uns e outros por razões diferentes. sejam aqueles que por defeito profissional pensam e escrevem sobre este tópico. ou aqueles que a defendem em sede de tribunal para além da dúvida razoável. até a qualquer um de nós que lida com a verdade e o seu contrário no quotidiano. Os pais por exemplo são um grupo de pessoas para quem esta questão da verdade é um verdadeiro tratado de vários tomos. até porque aquilo que é num momento deixa, aparentemente, de o ser em outra altura. experimentem perguntar a pais com mais do que um filho! Aquilo que assumiram como verdade no primeiro, até porque muitos pais nesta viagem inaugural estavam sobejamente imersos em medos e incertezas. o mesmo tendencialmente se vai desvanecendo no segundo, terceiros, quarto filho, até um limite da razoabilidade. O valor da temperatura a partir da qual passa a ser ligado o alarme e as idas de emergência para o hospital, ao facto de comerem mais ou menos bem a sopa e os legumes, até à cor e forma dos cocós. a verdade e os detentores da mesma não se proíbem de a afixar e arreigar-se de que a sua verdade é melhor do que a do vizinho.
Quantos não foram aqueles pais de primeira viagem que receberam testamentos verbais e escritos e até mesmo alguns tratamentos de incapacidade de outros amigos seus também pais e já para não falar dos seus próprios pais e avós da criança?! Não faças isto, ou faz aquilo, a minha pediatra é muito experiente e diz para fazer desta outra maneira, até ao não te preocupes que isso depois passa, li no outro dia na internet. A internet, esse pai, mãe, pediatra, e alguma coisa mais dos dias modernos. na internet dizia para fazer isto! mas a minha pediatra não me avisou disso, já não posso confiar nela! não fazia a ideia de que havia uma cura para estas situações. Cura? Tratamento? Terapia? Cura? Diz-me o que é que tenho de fazer?Já não consigo aguentar mais o sofrimento do meu filho! E eu próprio já não aguento mais um dia a viver desta forma! Todos os dias são dias de terapias! E eu nem sequer vejo que haja uma melhoria tão visível assim! talvez possa experimentar? Mal não deve fazer certo? Li na internet.
Novamente a internet! Mas a internet não fala sozinha! Apesar da inteligência artificial o fazer em perfeitas condições! Mas a internet é composta de todos nós e a informação que lá veicula também. e os pais continuam dizendo, vi na internet dizer que muitos pais, cada vez mais pais, dizem que tomaram vitamina E e que os seus filhos autistas começaram a falar. Espera lá! O filho autista que não fala pode começar a falar? E não tem de fazer nenhuma operação? Nem anos a fio de terapias? Basta tomar umas quantas cápsulas de vitamina E? Nesta altura contexto são alguns os leitores, pais ou não, que pensam que estarei a brincar. Mas não estou. ainda ontem ouvi falar de casos desses. Pais que vão aviar cápsulas de vitamina E com essa indicação- o seu filho, filha com autismo vai começar a falar! E outras pessoas, pais ou não, mas principalmente alguém com uma criança não verbal com autismo, vai parar de ler esta notícia e ligar um browser da internet para escrever - vitamina E autismo e esperar pelas infinitas possibilidades que a internet vai oferecer. vão olhar para umas páginas com mais atenção do que outras. Mas irão encontrar uma que terá testemunhos de outros pais, verdadeiros ou não, pais e testemunhos, mas que irão dizer o quanto estão satisfeitos com a toma da vitamina E e como os seus filhos autistas não verbais começaram a falar.
Mas as histórias não param aqui. Até porque alguns irão parar as sessões de terapia da fala que os seus filhos estavam a fazer. Ou então nem vão sequer fazer uma primeira avaliação porque querem experimentar primeiro o que vai acontecer com a vitamina E. Até porque os resultados parecem não estar a acontecer como os pais desejariam. alguns pais leitores deste texto poderão nesta altura começar a pensar, se é que já não o fizeram, que todo o texto é para culpar os pais das noticias falsas (fake news) e que não sabem cuidar dos filhos ou são negligentes. mas nada disso. Não é verdade que esteja a fazer tal coisa. E mais uma vez sai-me esta palavra - verdade. Mas como é que eu sei que é verdade? E melhor, como é que vocês sabem se inquérito estou a escrever é verdade, ou está de acordo com o que eu penso e acredito? Pergunta difícil, certo? resposta ainda mais difícil! e o que é a verdade, senão ela própria, ou o que faz dela a verdade!? Os pais querem o melhor para os seus filhos. Ainda que este querer possa em algumas situações causar um impacto negativo na sua situação.
Por exemplo, uma outra notícia que circula nos meandros da internet, grupos de pais com crianças com autismo é de que há uma cura para o autismo. e que um das curas possíveis passa pela ingestão de lixívia. isso mesmo, leram bem - lixívia. mais uma vez, alguns dos leitores começaram a ter alguma dúvida acerca da minha sanidade mental. Mas é verdade! circula desde o ano passado um conjunto de notícias e testemunhos de pais de que a ingestão de lixívia por parte de crianças com autismo as cura. Nestas e em outras noticias semelhantes sempre me pareceu existir mais do que uma falsidade. neste caso, temos a afirmação da cura para o autismo em primeiro lugar. Porque não há cura para o autismo. e eu diria que esta é a mais importante e aquela que faz surgir todo um conjunto de outras falsidades, expectativas e falsas esperanças, seja nos pais mas também nos próprios autistas. e a seguinte falsidade é de que a ingestão de lixívia cura o autismo. Aquilo que a ingestão de lixívia faz é causar uma intoxicação na criança e a sua provável morte. Mas foi preciso muito para que o livro vendido na Amazon e que fazia a construção desta intervenção deixasse de estar presente e livre para a venda.
A questão das vacinas que já não é novidade nenhuma para ninguém dos presente constitui-se como um outro exemplo. O médico que deu inicio a este movimento, ao fim de um número de anos veio fazer um desmentido oficial sobre as suas afirmações. Isto para além da própria comunidade cientifica e médica ter feito pressão para que isso acontecesse. Mas não sem antes existir uma verdadeira batalha sobre o assunto da verdade afirmada por ambas as partes. ao fim destes anos todos o número de evidências cientificas sobre a importância da vacinação é indiscutível. mas ainda continua a existir um número significativo de pessoas, normalmente grupos de pais, que continuam a advogar o contrário ou que em caso de dúvida preferem não vacinar. E com isso vão expor os seus filhos e todos nós a um conjunto de situações que foram precisos anos para as erradicar. E como ser provada essa mesma afirmação? através dos resultados obtidos através de inúmeros estudos conduzidos com o máximo rigor cientifico através de uma metodologia que permite afirmar essa mesma verdade - a vacinação não provoca o surgimento de casos de autismo. Mas estou certo de que haverá pessoas, algumas pelo menos, que ao lerem este parágrafo anterior que irão dizer que não estão tão certas dessa verdade. E que em caso de dúvida preferem aguardar.
Ou agora mais recentemente o caso da administração do óleo de cannabis em crianças, jovens e adultos com Perturbação do Espectro do Autismo e que acumulam situações de epilepsia dizendo-se que a administração de um composto de óleo de cannabis faz com que exista uma maior e melhor capacidade de controlar a ocorrência destas situações. Mas também aqui a evidência cientifica não é clara. E com isso quero dizer de forma mais clara que não existem estudos científicos rigorosos conduzidos em número suficiente para poder afirmar essa verdade ou o seu contrário.
Os pais, sejam de crianças autistas ou não, querem o melhor para os seus filhos. Ficam reféns muitas das vezes à sensação de culpa de não ter feito nada ou de não ter tentado algo. Os pais de crianças com Perturbação do Espectro do Autismo são um grupo bastante visado nesta dinâmica das notícias falsas (fake news). São um grupo de pessoas fragilizado. Não que sejam frágeis. Muitos não o são, apenas se tornam frágeis devido ao número de anos em sofrimento devido a todo um conjunto de situações. E que principalmente sem apoio ou sem o apoio adequado, essas mesmas situações se tornam devastadoras e causadoras de grande sofrimento psicológico. As pessoas quando estão fragilizadas e principalmente os pais, que agem em nome dos seus filhos, na grande parte das vezes, estão susceptíveis, permeáveis ao que lhes dizem que irá ajudar os seus filhos. Têm um ensinamento da atenção para todo este tipo de informação. Fazem pesquisas intermináveis na internet à procura de cura ou de uma intervenção que faça com que determinados comportamentos deixem de ocorrer. Ou no caso do metilfenidato (Concerta, Ritalina, Rubifen) procuram informação que lhes comprove que tomaram a decisão certa em não aceitar a medicação para os seus filhos ou de a terem retirado em altura certa. Sempre sob pena de causar um grande mal estar e profunda injustiça de não deixar que os seus filhos tenham a oportunidade igual à dos outros.
Ou outros temas talvez mais sensíveis e também mais complexos de poder falar. A falta de evidência cientifica sobre alguns modelos de intervenção no autismo. Ou seja, já não estamos a falar de retirar medicação, ou de não administrar determinadas substâncias que provocam mal estar. Estamos a falar da possibilidade de determinada intervenção não ser tão eficaz quanto aquilo que se defende e ainda defende. Estou a falar por exemplo do Modelo ABA. Um modelo que ao longo destes anos, e nos EUA, continua a ser repetidamente prescrito para a intervenção junto de crianças, jovens e adultos com Perturbação do Espectro do Autismo. Mas que em Inglaterra deixou de constar enquanto terapia recomendada para a intervenção no autismo de acordo com a agência NICE (agência que desenvolve e difunde os guias para a intervenção nas mais variadas condições).
Das três teorias "tradicionais" que existem sobre a filosofia e a metafísica da verdade, as mesmas afirmam 1) as teorias de correspondência da verdade sustentam que a verdade consiste no nosso pensamento e fala correspondendo, em certo sentido, à realidade; 2) as teorias da coerência sustentam que a verdade é uma questão de coerência entre crenças num determinado sistema; e 3) as teorias da pragmática que sustentam que a verdade é uma questão daquilo em que somos justificados em acreditar, seja porque essas crenças são úteis e verificadas, ou porque essas crenças são justificadas no limite da investigação. Até aqui, e talvez principalmente aqui, nesta análise da m metafísica da verdade, compreendemos que a verdade e o seu conceito são complexos. São muitas as vezes em que não estamos verdadeiramente a discutir a verdade ou a querer prova-la. Parece que estamos mais a querer defender a nossa propriedade sobre essa mesma verdade. A imposição da nossa forma de pensar sobre a dos outros.
Mas as coisas não ficam por aqui. No autismo, como em outras situações médicas, mas não só. Aquilo que se sabia há 80 anos atrás não é o mesmo da actualidade. E como tal, a própria verdade sobre a condição e a sua intervenção vai sendo alterada. E hoje, com a velocidade com que comunicamos. E com o número cada vez maior e mais diversificado de pessoas e com uma formação heterogénea a comunicar, a complexidade aumenta exponencialmente sobre o que é a verdade em determinado momento sobre um determinado assunto.
Não obstante tudo isto, e mais 327.483 páginas que se pudessem escrever sobre o assunto é fundamental pensar e agir sobre tudo isto. E como? É importante dotar os pais, capacita-los com a informação adequada do que é adequado e não para a intervenção com o seu filho/a com autismo. É preciso dotar os pais, e principalmente aqueles que devido ao seu perfil acabam por ter uma presença marcada junto do grupo maior de pais e que os consegue influenciar com mais facilidade, de informação adequada e cientificamente válida sobre o que é o autismo, como avalia-lo e intervir. Mas também junto dos profissionais de saúde e da Sociedade de uma forma geral. É preciso ajudar desde cedo todos a aprender a questionar a verdade e a saber olha-la das mais variadas perspectivas. Há quem defenda a existência de algum tipo de punição, proibição, legislação, ou algo que rime, para que seja travado este número de noticias falsas. Penso que o caminho deverá ser outro. Não que não seja um caminho combativo, ainda que com outras ferramentas. Combater de forma punitiva estes movimentos e as pessoas pode detrás destes movimentos parece enfurecer e fomentar um maior apoio por parte de mais pessoas a estes mesmos. Aquilo que tanto desejamos volta-se contra nós e principalmente contra os mais desprotegidos nesta equação.
Ainda esta semana foi publicado no jornal Público uma noticia da autoria da Dra. Rute Agulhes (psicóloga clínica) sobre as Constelações Familiares. E ao invés da colega ter-se envolvido num debate infrutuoso sobre a falsidade presente nesta auto-designada terapia, propôs-se a fazer um levantamento extensivo acerca da ausência de validade sobre as afirmações que constituem esta mesma auto-designada terapia. Mas será importante ajudar a que uma maior número de pessoas possa aceder a esta e outra informação. E a consiga compreender ou então tenha a possibilidade de a a levar a um espaço onde a mesma possa ser devidamente esclarecida e apurada. Os espaços de informação são cada vez mais e mais diversificados. A supervisão sobre os mesmos parece ser mais complexa e a própria legislação que protege a liberdade de expressão de todos nós e também destes movimentos também. Não parece bastar apenas identificar a informação e denuncia-la aos órgãos competentes. Também é importante poder questiona-la no espaço público e junto cada vez mais de um número maior de pessoas.
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