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Estar na zona

Senta-te João (nome fictício), disse o Pediatra. Percebi que pediste para entrar sozinho na consulta, continuou o Pediatra. João tem 17 anos. Tem sentido algumas dificuldades e não sabia a quem recorrer. O Dr. Macedo (nome fictício) foi a única pessoa que João se conseguiu lembrar. Os seus pais levavam o João com regularidade desde pequeno ao Pediatra. As suas dificuldades respiratórias durante bastante tempo. Os problemas com a alimentação durante boa parte da infância e inicio da adolescência e os problemas com o sono desde sempre, levaram a que os pais do João tivessem recorrido vezes suficientes ao Dr. Macedo. O João não se sentou. Não porque não tivesse compreendido. Parecia mais agitado do que o habitual. Já há algum tempo que não te via João!, diz-lhe o Dr. Macedo. O João apresentava-se pouco cuidado. Já tinha barba e esta estava descuidada também. Tinha algumas nódoas na roupa, mas já pareciam ter algum tempo. O que tens andado a fazer?, perguntou-lhe. Escrito histórias de fantasia, disse-lhe João de uma forma breve sem antes ter dito o que fosse desde que entrou. As vozes estão a incomodar-me!, disse sem que o Dr. Macedo lhe tivesse perguntado alguma coisa mais. O Dr. Macedo por esta altura já tinha percebido que o João não estava bem. Ligou para a recepção para saber se o João tinha vindo acompanhado com os pais. O Dr. Macedo começou por suspeitar que João podia ter feito algum consumo de substâncias. Disse que o queria observar e pediu para ele se sentar na marquesa. Prefiro estar a conversar com as vozes em vez de estar com os outros, disse-lhe João, novamente se lhe ter perguntado nada. O Dr. Macedo sempre soube das dificuldades do João em estabelecer relações interpessoais. Contudo, o João nunca tinha evidenciado nada como aquilo que ali era possível observar. Como tem estado as coisas na escola?, pergunto o Dr. Macedo. Sempre boas notas! Sempre boas notas!, disse João. Continuo a não gostar da gosta!, acrescentou. E a conversa com as vozes João, como têm sido?, perguntou-lhe. Tudo bem. Eu gosto de conversar com as vozes, mais do que conversar com os outros, disse-lhe. O Dr. Macedo percebeu que tinha de falar com os pais. A mãe do João tinha-o acompanhado, apesar de ter ficado na sala de espera. O Dr. Macedo percebeu que teria de falar com a mãe. Disse ao João para aguardar na marquesa. A mãe do João reportou que o João tem andado mais esquisito, alheado, mas não como era antes. O seu interesse pela escrita tornou-se ainda mais intensa. Parece não ter feito mais nada. A mãe trouxe uma fotografia de uma das páginas do caderno do filho. O Dr. Macedo não hesitou em dizer que o João teria de ser observado na Psiquiatria e explicou que havia forte possibilidade de se tratar de um Primeiro Episódio Psicótico. Deixou a mãe para poder ir ter com o João e avaliar com mais cuidado a situação.


Os pediatras são frequentemente os primeiros médicos a encontrar adolescentes e jovens adultos que se apresentam com sintomas psicóticos. Embora os pediatras possam fazer o encaminhamento destes seus clientes para a Psiquiatria, por vezes a escassez de resposta dos serviços de psiquiatria para crianças e adolescentes pode por vezes exigir que os pediatras façam uma avaliação inicial ou continuem os cuidados após recomendações feitas por um especialista. Como tal, é fundamental saber como identificar e avaliar melhor estes sintomas em pacientes pediátricos e como colaborar e encaminhar para cuidados especializados. Até para ajudar a minimizar a duração da psicose não tratada e para optimizar os resultados. Uma vez que nem todos os clientes que apresentam sintomas semelhantes aos psicóticos se converterão numa perturbação psicótica, os pediatras devem evitar atribuir um diagnóstico prematuramente, sempre que possível. Outros factores que contribuem para esta situação, tais como a co-ocorrência de abuso de substâncias, também devem ser considerados. E tendo em conta o cruzamento entre as situações do neurodesenvolvimento e a psicose. No caso do profissional de saúde, Pediatra ou outro, suspeitar ou souber que o seu cliente apresenta uma Perturbação do Espectro do Autismo, é fundamental que possa ser realizada uma avaliação ainda mais cuidadosa.


O primeiro episódio de psicose geralmente ocorre entre 15 e 35 anos, durante a adolescência ou idade adulta jovem. O desenvolvimento de psicose durante este período pode levar a efeitos pessoais, sociais e custos económicos. A investigação indica que os resultados funcionais podem ser piores para psicose desenvolvida durante a adolescência do que para psicose desenvolvida na idade adulta (especialmente quando houve dificuldades pré-mórbidas), com maiores taxas de suicídio e tentativas de suicídio e maiores custos económicos do que outras condições de saúde mental na adolescência. Na psicose, o impacto verificado no pensamento e comportamento é grave ao ponto de se perder a capacidade de distinguir a realidade da não realidade.


A psicose é definida como uma deficiência no pensamento e comportamento tão grave que se perde a capacidade de distinguir a realidade da não-realidade. Os sintomas psicóticos incluem delírios, crenças fixas e falsas, e alucinações ou falsas percepções sensoriais. Embora estes sintomas não representem necessariamente uma perturbação psicótica primária, existe uma forte associação com a presença ou desenvolvimento futuro de outras perturbações psiquiátricas. As perturbações primárias do humor ou ansiedade com sintomas psicóticos concorrentes indicam frequentemente uma forma mais grave de perturbação do humor ou ansiedade, tal como a perturbação bipolar, com características psicóticas e implicam um funcionamento mais deficiente.


No que diz respeito aos sintomas e prevalência, as perturbações psicóticas caracterizam-se por delírios, alucinações, pensamento e comportamento desorganizados e sintomas negativos. Os estudos apontam para cerca de 17% de crianças dos 9 aos 12 anos e 7,5% de crianças dos 13 aos 18 anos de idade que reportaram ter alucinações auditivas. A maioria destes jovens não desenvolve perturbações psicóticas primárias, embora aqueles que experimentam alucinações sejam mais propensos a ter ou desenvolver perturbações psiquiátricas. As pessoas caracterizados como tendo experiência clínica de alto risco atenuam os sintomas psicóticos e podem ter mudanças subtis no seu pensamento e comportamentos que diferem do funcionamento básico. Frequentemente experimentam um nível de angústia mais elevado a partir destes sintomas. Os doentes de alto risco clínico também têm uma maior probabilidade de transição para sintomas psicóticos evidentes e, eventualmente, para uma perturbação psicótica primária.


Em relação à avaliação, quando os pacientes apresentam sintomas psicóticos evidentes, deve ser realizado um historial completo de apresentação de doença e exame do estado mental. Os pediatras devem fazer uma avaliação acerca da ideação suicida, uma vez que os clientes que apresentam sintomas psicóticos correm um risco mais elevado de ideação/tentativa suicida. Deve ter-se o cuidado de não patologizar o que poderiam ser amigos imaginários, crenças culturais ou traumas. O diagnóstico diferencial incluem perturbações psicóticas primárias, perturbações do humor, ansiedade, trauma, perturbações do uso de substâncias, perturbações da personalidade, incapacidade intelectual, perturbações do espectro do autismo e doenças somáticas. É fundamental o trabalho em estreita colaboração com a pedopsiquiatria, além de outros profissionais na área da psicologia.


No que diz respeito ao tratamento, este inclui uma intervenção psicossocial, tais como terapia cognitiva comportamental e intervenções centradas na família, e farmacoterapia para tratar a doença psiquiátrica subjacente que se manifesta em sintomas psicóticos. As intervenções baseadas em evidências para o Primeiro Episódio Psicótico consistem em cuidados especializados coordenados, com formação de resiliência individualizada, programa de educação familiar, educação apoiada e emprego, e tomada de decisões partilhadas relativamente ao tratamento medicamentoso (quando necessário). Embora o cliente não deva ser diagnosticado prematuramente com uma perturbação psicótica primária, a redução da duração da psicose não tratada (tempo entre o primeiro episódio psicótico e o tratamento) pode melhorar os resultados.


A Dra. Clara (nome fictício), Pediatra, colega do Dr. Macedo, recebeu um destes dias Martim (nome fictício) na consulta. O Martim tem neste momento 16 anos e encontra-se no 10º ano. A Dra. Clara conhece o Martim desde sempre. Aos 7 anos diagnosticou o Martim com Perturbação do Espectro do Autismo. Solicitou uma avaliação detalhada do seu comportamento, mas não tinha dúvidas acerca da evolução do seu comportamento remetia para uma Perturbação do Neurodesenvolvimento. A avaliação do perfil cognitivo do Martim na altura demonstrou que ele tinha um QI de 85. Na altura foi integrado na Educação Especial. Martim tinha poucos amigos na escola e passava a maior parte dos intervalos na sala de aula. Martim, podes sentar-te, disse-lhe a Dra. Clara no habitual tom de voz sereno. Podes contar-me o que se passou?, perguntou-lhe. Eles estão a tomar esteroides. E já não é de agora, disse-lhe Martim. A situação precisa de outra compreensão e a Dra. Clara procurou falar com os pais de Martim para obter mais informação. Estes referiram que nos 6 meses que antecederam a identificação dos pensamentos delirantes e das alucinações auditivas, Martim tinha vindo a concentrar-se cada vez mais na ideia de que os rapazes na escola estavam a tomar esteroides. A intensidade das crenças de Martim aumentou no contexto de stress agudo quando os seus pais se separaram. Todas as rotinas de Martim mudaram à medida que ele e os seus irmãos viviam entre a casa da mãe e o novo apartamento do seu pai. Martim tinha ficado em pânico quando saiu com a sua família e quando viu os rapazes da escola e o explicou como um medo de estar perto de quem toma esteroides. Martim, embora capaz de descrever a sua ideia como um medo, não foi capaz de a esclarecer mais e não foi agradável a qualquer outro ponto de vista quando os seus pais tentaram discuti-la com ele. Numa quarta-feira de manhã, Martim entrou no parque infantil e atacou fisicamente um rapaz sem qualquer aviso prévio. Quando lhe perguntaram por que atacou o rapaz, Martim afirmou que o rapaz era um utilizador de esteroides.


A situação resultou numa suspensão da escola e numa avaliação completa da saúde. Martim não sentiu empatia com o rapaz que atacou e não conseguiu identificar se o rapaz teria ficado assustado ou preocupado. Facto que deixou a escola muito preocupada e os pais também. Isto apesar dos pais já estarem habituados a algumas questões sobre o comportamento do seu filho. Na consulta com a Dra. Clara, Martim referiu que lhe tinha sido dito um ano antes por um rapaz mais velho que o rapaz que ele atacou estava a tomar esteroides. Martim sente que ficou ruminar sobre esta ideia, embora o rapaz descrito fosse pequeno e de ligeira constituição. Martim tinha ficado preocupado com este pensamento ao longo do ano, e que tinha aumentado de intensidade desde que a sua situação social mudou. Ele tinha dificuldade em adormecer, pois não conseguia tirar o pensamento da sua cabeça. Os pensamentos de Martim não eram sequenciais e ele tinha dificuldade em concentrar-se na discussão, indo muitas vezes para tangentes. Martim afirmou que raramente ouvia vozes a chamar pelo seu nome quando ninguém estava na sala. Martim não tinha nenhum plano ou intenção suicida.


Os casos do João e do Martim dão-nos uma ideia do quanto desafiantes estas situações clinicas se podem tornar. Seja no processo de identificação e avaliação, mas também posteriormente ao nível da intervenção. Se as relações, sejam as sociais, mas também a terapêutica vão sendo desafiantes quando estamos com pessoas autistas. Até pelas dificuldades que nós próprios temos em nos conseguirmos adequar a uma forma diferente de ser. A situação tornam-se significativamente mais complexa quando adicionamos um Primeiro Episódio Psicótico. É fundamental que todos nós, incluindo profissionais de saúde, possamos estar despertos para estas situações, nomeadamente nos casos que já acompanhamos, e que verificamos que está a haver uma evolução clínica com este tipo de apresentação.


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