"Cientista Portuguesa cria mini-cérebros para estudar o autismo". "Investigação sobre autismo vence Prémio Pfizer 2019...", "Ter um filho autista não é o fim do mundo", "Pais de autistas fundam o primeiro centro de apoio à doença", "Aluno que agrediu professora à cabeçada tem autismo". "Mas é Perturbação do Espectro do Autismo? Ou será apenas Autismo, ou antes Síndrome de Asperger? Mas também já vi Autismo de Alto Funcionamento! Mas são todos uns génios? Ouvi dizer que sim! Mas há casos em que são agressivos! Em adultos!? Nunca tinha ouvido falar de autismo em adultos!" Nos últimos tempos, seja na televisão, jornais e até na rádio, a palavra autismo tem estado na "boca" de cada vez mais pessoas.
As noticias sobre o autismo desdobram-se. Sejam aquelas mais relacionadas com a investigação de ponta e que muito frequentemente trazem uma promessa de uma maior e melhor compreensão sobre a condição. Até por algumas outras noticias que acabam por defraudar as expectativas de muitos, especialmente os próprios com Perturbação do Espectro do Autismo e as suas famílias, com uma promessa de cura.
Mas as noticias não ficam por aqui. Mais frequente, até no autismo tem havido uma proliferação de noticias falsas (fake news). Normalmente, acerca de novas descobertas de formas de diagnóstico (e.g., análises ao sangue, etc.), passando por intervenções bizarras (e.g., beber lixívia), a outras formas de intervenção não validadas cientificamente. Este tipo de noticias tem levado a muitas pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo e as suas próprias famílias a abandonar as terapêuticas que estavam a realizar e a substituir por estas outras. Ou aqueles que ficaram a recentemente saber do seu diagnóstico começaram logo a segui-las.
Um outro grupo de noticias têm estado mais orientado para alguns dos estereótipos do Espectro do Autismo. Sejam os aspectos mais ligados com algumas das capacidades incríveis que algumas das pessoas com PEA demonstram ter. Seja nas artes, onde as competências de desenho são realmente prodigiosas e até na música. Passando pelas competências na área da programação e da informática, entre outras. Mas a ideia parece estar a ser desvirtuada, apresentando o lado mais funcional e "genial" do espectro do autismo como se fosse essa a única realidade. Porque não é, e isso confunde muito as pessoas. E da mesma forma apresentar o polo oposto em que além de apresentar um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo nível 3 tem igualmente um défice cognitivo associado a uma Síndrome Genética. Também não é a única apresentação possível de um quadro de PEA.
A representação de grupos marginalizados tornou-se um tópico importante nos órgãos de comunicação social na última década, e o autismo não é excepção. Tem sido feito algum progresso: temos programas de TV convencionais onde os autistas são os protagonistas e têm as suas próprias histórias. Mas, para que a representação seja realmente eficaz e útil, precisamos de uma representação variada do autismo. Porque as pessoas autistas são diferentes entre si. É simplesmente mais preciso mostrar muitos tipos diferentes de pessoas autistas. Como diz a famosa citação do Dr. Stephen Shore: "Se você conheceu uma pessoa autista, conheceu uma pessoa autista".
Mas não é assim que a TV apresenta esta condição. As pessoas autistas nos órgãos de comunicação social tendem a ser estereótipos, como os génios caucasianos socialmente desajeitados em "O Curioso Incidente do Cão à Noite", "O Bom Doutor" e a "Teoria do Big Bang". E um personagem estereotipado é bom! Algumas pessoas autistas são de facto assim. É por isso que precisamos de várias personagens diferentes para que exista uma representação igualmente heterogénea como a própria realidade.
Porque a representação realista do autismo tem consequências no mundo real. Mesmo além dos benefícios emocionais que as pessoas autistas podem ter por se verem representadas nos órgãos de comunicação social, existe uma razão muito prática: os retratos realistas e diversos são importantes: o diagnóstico.
Como o diagnóstico de autismo é baseado no comportamento - não há exame de sangue que você possa usar - o comportamento dos personagens autistas afecta a compreensão da sociedade sobre o que é o autismo. É mais provável que uma pessoa seja enviada por sua família ou por ela mesma para diagnóstico, e talvez seja mais provável que seja diagnosticada por um profissional médico, se ela se alinhar com essas descrições esterótipadas. A TV não reflete o alcance das pessoas autistas reais. Até porque além dos diálogos, há associado uma imagem do que poderá ser o autismo. E esta imagem acaba por ter um peso ainda mais neste processo. Nomeadamente, a ideia de haver um conjunto de traços visíveis do que será um autista - facto que é completamente absurdo e contrário à realidade. Já tem sido demonstrado que muitas dessas personagens na Tv vão ao encontro dos critérios de diagnóstico da DSM 5. Facto que se sabe não representar a totalidade da realidade do autismo.
Pode parecer estranho e até mesmo controverso, estar a dizer que uma personagem colada aos critérios de diagnóstico da DSM 5 (manual de diagnóstico das perturbações mentais) para o autismo não representar a totalidade da realidade do que é uma Perturbação do Espectro do Autismo. Mas é verdade. Perguntem a uma pessoa com o diagnóstico de PEA sobre essa questão. Ou a um familiar. E até mesmo a determinados profissionais de saúde (médicos, psicólogos, terapeutas, etc.). A realidade clinica mostra que a Perturbação do Espectro do Autismo, seja no nível 1, 2 ou 3 é diferente, principalmente ao nível qualitativo, daquilo que é descrito nos critérios de diagnóstico da DSM 5. E isso é perigoso na medida em que cria enviesamentos na representação mental que se tem sobre esta condição e mais uma vez isso impacto negativamente sobre o encaminhamento das pessoas para o diagnóstico.
Toda esta questão também tem sido um convite à própria comunidade do Espectro do Autismo para se manifestar de forma mais frequente. O movimento de Self-advocacy tem crescido e feito um trabalho fundamental de lobby junto de várias Instituições e órgãos de comunicação social. Em Portugal as coisas ainda estão a dar os primeiros passos mas sinto haver uma abertura cada vez maior. Como tal é fundamental que os próprios adultos com Perturbação do Espectro do Autismo, os seus familiares e profissionais de saúde que os acompanham possam ajudar a gerar uma consciência mais neurodivergente e melhor representativa da realidade.
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