"- Carlos, vem jantar! Quantas vezes tenho de te chamar?"; "- Tiago, já te pedi para tomares atenção à aula e deixares o telemóvel!"; "- Importaste de olhar para mim enquanto falo contigo?!"; "- Joana, já fizeste os trabalhos de casa? Primeiro são os trabalhos de casa e não os videojogos!"...
Estas e outras frases semelhantes, quantas vezes já não as ouviu? E você, quantas vezes já não as disse? Mas será que são assim tantas as vezes que se ouvem e dizem estas frases? E será que é assim com todos, com uma maioria? E será apenas com as crianças e jovens ou também com os adultos? E terão outros problemas associados? Na verdade sou melhor a fazer perguntas do que a jogar videojogos. Que o diga o meu sobrinho que me ganha sem problemas no Fifa e o meu amigo João Faria que já me viu vezes sem conta a deixar queimar a cozinha no Overcooked. A minha participação nos videojogos prende-se principalmente com a minha actividade clínica enquanto psicólogo. Dos inúmeros clientes que acompanho com uma Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) são vários aqueles que apresentam dificuldades na área dos videojogos pela internet e/ou na utilização das Tecnologias de Informação (TI's). Mas não é sobre esse aspecto que gostaria de escrever neste post. Antes pelo contrário gostaria de escrever sobre o lado saudável dos videojogos e principalmente da sua utilização. E tal como a própria imagem diz "...saves lives.".
Quem souber o que meu amigo João Faria gosta, conhece e joga videojogos poderá de uma forma incauta pensar que ele tem alguns problemas ou até mesmo poderá ter algumas características de comportamentos de adição aos videojogos pela internet. Quem disser ou pensar nisso várias coisas poderão ser ditas. Primeiro, não conhece verdadeiramente o João Faria (Psicólogo Clínico no PIN e coordenador do NICO, do Núcleo de Intervenção nos Comportamentos Online e como tal meu "chefe"). Ou seja, o meu colega é um expert na avaliação e intervenção psicológica precisamente nestes casos de comportamentos de adição aos videojogos pela internet. Mas não só. Em segundo, podemos dizer que também não conhece muito bem aquilo que significa um jogador profissional ou casual e que o faz de uma maneira saudável de um jogador com características que requerem atenção clínica. E em terceiro, podemos pensar que não tem uma opinião justa, apegada ao real e conhecedora das múltiplas possibilidades de utilização dos videojogos na melhoria e capacitação de competências, socialização, integração e bem estar psicológico.
É aqui que gostaria de incluir o conceito de Harm Reduction que me foi dado a conhecer junto da colega Marta Borges. Enquanto muitas abordagens terapêuticas e de psicoeducação tendem a se concentrar nos indivíduos, muitos quadros de prevenção e minimização de danos (harm reduction) enfatizam o importante papel para ser desempenhado por instituições e autoridades mais amplas. As estratégias de redução de danos são informadas por uma abordagem de saúde pública que vê os jogos como um comportamento de saúde (em vez de um vício em si), onde os jogos são seguros em certos níveis baixos a moderados de utilização, mas podem-se tornar incrementalmente prejudiciais com o aumento do uso. O principal objetivo da redução de danos é reduzir as consequências negativas associados ao uso excessivo, tomando medidas práticas para lidar com as condições de uso e o próprio uso.
E nem por acaso esta manhã enquanto vejo as noticias online verifico que no MAAT (Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia) está desde esta 4ª feira patente uma feira interactiva, chamada de "Playmode", resultante da ligação entre arte contemporânea e o jogo, e que vai desafiar o público a brincar e refletir sobre o impacto das novas tecnologias na sociedade. Ou seja, ao invés de ser um abrir de um noticiário a dizer que há cada vez mais um número de jovens "viciados" nos videojogos, etc., a noticia aborda de uma forma completamente diferente a utilização dos videojogos. Procura trazer até si as pessoas, aproxima-las de novas e diferentes perspectivas. Procurar reunir crianças, jovens, adultos, jogadores profissionais, casuais e outros curiosos e interessados, mas também escolas e famílias, todos eles com um enquadramento positivo e diferente daquilo que tem sido o habitual. Nomeadamente com a introdução das novas categorias na DSM-5 e na ICD-11 dos comportamentos de adição aos videojogos pela internet.
Embora exista um debate em andamento entre especialistas sobre a psicopatologia face à perturbação de jogo na internet (IGD - Internet Gaming Disorder), incluindo se o IGD deve ser considerado um perturbação de dependência, existe um consenso geral de que os jogos podem se tornar problemáticos quando envolvidos em níveis elevados, principalmente entre crianças e adolescentes. Contudo, o jogo não é considerado inerentemente problemático, mesmo quando ocorre com uma determinada frequência. Uma variedade de jogos comerciais é destinada a ser usada por crianças, incluindo muitos dos jogos mais populares (e.g., Pokémon). Uma criança que toca silenciosamente num dispositivo portátil de jogos é uma visão comum em muitos contextos e isso não deveria provocar alarme per sí.
Do ponto de vista da saúde pública, a participação em actividades de jogos pode ser vista ao longo de um espectro, onde a maioria das pessoas tende a se envolver em níveis "seguros" de jogos. Ou seja, jogos que não produzem consequências negativas significativas para o utilizador ou outros. Uma pequena proporção de indivíduos pode "abusar" de produtos e serviços de jogos de diferentes maneiras e com diferentes graus de regularidade. O uso indevido refere-se a jogos que tenha consequências negativas para o utilizador ou outros, devido ao uso excessivo ou ao abandonar de outras atividades ou responsabilidades importantes. No outro extremo do espectro há uma proporção muito pequena da população de jogadores que pode ser considerada jogadores "patológicos". Ou seja, pessoas com IGD e que frequentemente exibem padrões de comportamento estatisticamente desadequadas do jogo que podem contribuir para prejudicar a pessoa. O grupo mais seriamente afectado foi estimado através de vários estudos de meta-análise e que constitui cerca de 3% da população (sendo que em Portugal o valor até parece ser menor).
Ao longo deste tempo de intervenção com jogadores com características e comportamentos de adição aos videojogos pela internet há uma entre muitas outras questões que tem sido colocada. Deve-se ou não pensar na utilização da restrição completa enquanto opção na intervenção. Ou seja, devemos ou não equacionar a abstinência completa nestes tipos de caso. Ou ponderar outras metodologias também ela muito frequentemente utilizadas dentro dos modelos de intervenção comportamental e cognitiva?A intervenção contudo não é apenas remediativa e no momento em que surgem as dificuldades. Deverá ser primariamente equacionado num nível bastante anterior enquanto promotor da prevenção. Por exemplo, o objetivo das abordagens de saúde pública é fornecer intervenções em diferentes níveis, desde abordagens primárias que previnem o desenvolvimento do problema, passando por aqueles que procuram reduzir ou minimizar os danos já existentes naqueles que iniciaram a actividade e reduzir os problemas naqueles que já os têm.
Ainda assim volto a sublinhar que a maioria dos jogadores fá-lo de uma forma saudável. A normalização dos jogos é uma consideração significativa para medidas de prevenção. Jogar é uma parte normal da vida quotidiana de muitas pessoas e uma cultura de lazer dominante nos países onde ocorre, e só foi proibido em certa medida em alguns casos isolados. O comportamento dos jogos nos países industrializados também tende a começar numa idade muito jovem. Assim, o envolvimento em actividades de jogos tenderá a preceder a capacidade formal de raciocínio lógico para muitos indivíduos. Em vez de ser iniciado por actos independentes de planeamento e julgamento, as primeiras experiências de jogo são facilitadas pelos pais ou responsáveis, directamente, fornecendo à criança um dispositivo de jogo para possuir e usar, ou indiretamente, activando o jogo com outras pessoas em ambientes suportados por jogos. Ou seja, é fundamental poder ajudar os pais e educadores a serem mediadores entre as crianças que iniciam o contactos com os videojogos e tecnologias. Ainda que algumas crianças façam esta iniciação bastante precoce.
No caso das escolas e já acontece em muitas delas estes mesmos equipamentos e jogos podem ser integrados no processo de aprendizagem e em contexto de sala de aula ao invés de ser um objecto que se procura apreender à porta da sala de aula.
Todos as pessoas nascidas em sociedades industrializadas serão criados em ambientes onde as tecnologias digitais estão sempre presentes, são facilmente acessíveis e são parte integrante do quotidiano. A implementação de medidas para impedir que muitos dessas pessoas se envolvam em níveis de uso de jogos que causam danos ou perturbações ao funcionamento saudável apresenta um grande desafio. A tarefa de impedir o início e a progressão da IGD, como outros comportamentos de adicção, envolve gerir a influência de vários factores de risco, e aumentar a influência de factores de proteção em pessoas susceptíveis a problemas.
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