Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, conforme manifestado pelo que segue, actualmente ou por história prévia, lia Amélia (nome fictício), envolta numa voz já trémula mas assertiva. Pedi ao vizinho do 2º esquerdo que me arranjasse uma fotocópia do diagnóstico de autismo, esclarece Amélia. Não sei o nome dele, mas ele faz-me sempre muitas perguntas de como é que eu estou, de cada vez que me encontra nas escadas do prédio, acrescenta. O rapaz alugou o quarto quando veio estudar para a Universidade. Felizmente não é desses que traz gente para casa para fazer festas. Não sei como poderia aguentar, desabafa. Ainda bem que não me perguntou porque lhe tinha pedido aquilo. Não queria nada ter de lhe mentir. É algo que sinto que nunca consegui, confessa. Em cima da mesa encontram-se várias fotocópias. Há livros espalhados por várias partes da casa, mas parecem todos estar arrumados por uma mesma regra. Nas fotocópias dá para perceber que são sobre diferentes assuntos. Amélia percebe que os meus olhos se desviaram para as fotocópias. Não uso internet, diz-me. Não é porque não goste. Já a usei algumas vezes na Junta de Freguesia. Escolho não a usar da forma como penso que muitas pessoas a usam, concluiu. Sorri-lhe. O seu rosto mantém-se igual. Deixe-me dizer-lhe porque lhe pedi que viesse aqui, diz, novamente naquela voz trémula e assertiva. Amélia tinha-me contactado há duas semanas. Vi o seu nome na internet relacionado com o Autismo nos adultos. Um dos dias em que tinha ido à Junta de Freguesia para renovar uns documentos por causa da minha pensão, diz-me. Não gosto muito de sair. Nunca gostei. Excepto quando tenho algo programado para fazer, acrescenta. Entretanto distrai-me e olho em redor para as paredes. Não há nenhuma fotografia. Apesar de Amélia nem sempre fazer contacto ocular fico com a sensação que ela percebe sempre o que estou a fazer. Há muito que tirei todas as fotografias da parede, diz baixinho. Quando o meu marido faleceu há 18 anos tirei todas as fotos que tinha. Não tenho ninguém da família que ainda esteja vivo e não me faz sentido ter as fotos deles, refere. Amélia foi casada durante 48 anos. Tiveram uma filha que faleceu precocemente num acidente automóvel. Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, conforme manifestado pelo que segue, actualmente ou por história prévia, volta Amélia a ler. O que é que acha disto? A pergunta era mais do que aquilo que fora dito. Não se revê, certo?, arrisquei a perguntar-lhe. É a mesma coisa que dizer-lhe que a minha diabetes e hipertensão são causadas pela psicossomática, percebe?, questiona-me sem mudar o semblante. Volto a sorrir-lhe. Mas percebeu?, pergunta-me novamente sem ter percebido que o meu sorriso daria indicação de a ter compreendido. Sim, perfeitamente!, referi-lhe. Nunca ninguém soube do meu sofrimento, inicia. Porventura, durante algum tempo nem eu própria soube acerca dele, continua. Durante muitos anos o sofrimento era percebido de forma diferente e em situações igualmente diferentes da actualidade. Nasci em 1930, diz Amélia enquanto faz uma pausa para baixar o candeeiro que a luz incomoda-a. Amélia fez 91 anos recentemente a oito de janeiro. Foi professora das Escolas do Magistério Primário. Durante muito tempo muito de mim estava coberto por todo o contexto em que vivíamos, compreende? As mulheres viviam subjugadas. Primeiro ao pai, logo de seguida à família, pouco tempo depois ao marido e quase sempre à Sociedade. Felizmente ou infelizmente, a minha mãe sempre foi uma mulher adoentada, triste, provavelmente deprimida, refere. E por isso apenas tive de lidar com as orientações do meu pai. Da minha mãe apenas tratava de cuidar dela, confesso. Era-me difícil lidar com ela, sempre com aquelas lamurias, diz. Nunca percebi porque as pessoas se queixavam ao invés de fazerem por mudar a situação! Os meus alunos perceberam isso ao longo de todos os anos em que os ensinei, diz com um sentido de orgulho. Ou pelo menos foi essa a minha leitura. Lidei com tudo na vida em parte como a vida lidou comigo, diz. Conheci o mundo no rescaldo de uma primeira guerra e vivi uma segunda. Se havia coisa que o mundo tinha de sobra era tristeza e sofrimento. Mas eu senti que a minha guerra durou toda uma vida, desabafa. Sou a mais velha de quatro irmãos. Cuidei deles todos, até porque a minha mãe não o conseguia. Eu também não sei se o consegui?, questiona-se. Nenhum deles me fala já há algum tempo, comenta. Eu sei que não sou uma pessoa fácil, mas sou uma pessoa justa, concluiu. Não posso não dizer aquilo que penso sobre as coisas e as pessoas. Não estaria a ser justa comigo própria e isso não é possível para mim! Hoje falam muito dessa coisa da camuflagem social como se fosse uma descoberta fantástica, diz Amélia naquilo que penso ser num tom sarcástico. Penso que nunca leram Molière e A Escola de Mulheres ou Choderlos de Laclos e Relações Perigosas, entre outros, refere assertivamente. Já há muito que nos camuflamos, provavelmente desde sempre, principalmente as mulheres, concluiu. Pelos vistos eu paguei o preço de não me ter subvertido a esse principio. As pessoas nunca gostaram. Os meus colegas nunca o aprovaram. O meu marido nunca gostou, mas esse dizia amar-me. Penso que isso fazia com que ele tolerasse este meu jeito. Ele explicou-me isso algumas vezes. Não é que eu não entendesse, mas havia outras coisas que me pareciam ser bastante mais importantes, remata. E como chegou a esta dúvida do autismo?, perguntei-lhe ingenuamente. Eu não cheguei até ao autismo, ele é que se chegou a mim, diz Amélia solenemente. Sempre observei que as pessoas à minha volta viviam e ainda vivem centrada em arrumar coisas em caixas. Eu não os censuro na verdade. Eu própria também gosto de arrumar certas coisas, refere. Mas as minhas coisas sempre me pareceram menos perigosas que essas outras, concluiu. Não precisei do nome psicose infantil, autismo, perturbação persuasiva do desenvolvimento, síndrome de Asperger ou perturbação do espectro do autismo para nada, refere numa tonalidade mais grave. Se esses nomes significam estas definições, diz Amélia apontando para a fotocópia. Do que me vale isso se tenho aquilo que eu própria sinto?, pergunta-me. Estão à espera que eu mude a forma como me sinto e penso para passar a dizer a mim própria que sou um "Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos..."?, pergunta-me novamente. Ficamos de falar na semana seguinte. Amélia tinha-se levantado. Fiquei com a sensação que aquela era a forma possível dela me dizer que já chegava por hoje. Encaminhei-me para a porta. Antes de eu esticar a mão para a cumprimentar à saída ela disse - Até para a semana!
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