Por vezes pergunto-me por que é que me deixei chegar até aqui, diz António de 73 anos (nome fictício). Andei a maior parte do tempo arrastado. Primeiro pelas mãos da minha mãe. Coitada, sofreu muito e morreu mais cedo do que eu, acrescenta. Depois pelas assistentes, porque o meu pai desapareceu assim que a minha mãe morreu, conta. E depois pelo tempo. Sim, o tempo também nos empurra, conclui.
As pessoas continuam a ter conversas sem sentido, diz Aurora de 82 anos (nome fictício) a residir num Lar. Passam o dia inteiro a falar da comida e do quanto horrível é. De as magoarem quando lhes enfiam a colher pela boca, refere. E dos filhos e dos netos que nunca aparecem. Não é tão diferente daquilo que foi a vida inteira. Sempre as mesmas conversas destemperadas, remata.
Já não me vejo ao espelho não sei há quanto tempo, diz Gertrudes de 68 anos (nome fictício). Percebi que estava velha quando o meu neto me disse precisamente isso. Nunca liguei muito a isso. A bem da verdade nunca liguei muito a grande parte das coisas, refere. O meu neto é assim parecido comigo. O que tem para dizer diz, acrescenta.
Quem é que eu sou?, pergunta. É essa a pergunta?, pergunta novamente. De certeza que quer mesmo saber isso?, diz Rudolfo de 81 anos (nome fictício). Deixe-me perguntar-lhe isto de volta - Quem é que acha que eu sou?, questiona-me. Fez-se silêncio durante alguns segundos. Os suficientes para Rudolfo dizer - Precisamente isso, um silêncio, refere. E adoraria que houvesse mais silêncio em meu redor. Valha-me a perda auditiva que vai sendo cada vez maior, conclui.
Estranha!? Curioso!! A vida, toda ela tem sido estranha. Por que é que continuam a dizer que eu é que sou estranha, diz Rafaela de 73 anos (nome fictício). Nunca precisei de nomes. Destes ou de outros, refere. Se me dizem que é autismo, pois que seja. Não creio que grande parte das pessoas saibam o que isso é. Nem eu própria! Sei o que eu sou. E ainda assim tenho dúvidas de muitas coisas, conclui.
Inesperado?! Como assim, inesperado!? O facto de ter sabido do diagnóstico de autismo apenas aos 54? E de ter vivido estes últimos vinte anos com uma visão diferente do resto da primeira metade!? Não vejo porquê, diz Adelaide com 74 anos (nome fictício). Nunca senti que o sistema de saúde fosse capaz de responder às verdadeiras necessidades das pessoas. E muito menos na saúde mental, refere. Vi isso com dois dos meus filhos rapazes e que acabaram por se suicidar antes de completar os vinte e cinco anos, conclui.
Continuamos ao fim destes anos todos a nos encontrar, diz Julieta de 78 anos (nome fictício). A Sara (nome fictício) ficou viúva bastante cedo e a Carolina (nome fictício) casou com o Victor (nome fictício) já depois dos cinquenta anos, diz Julieta acerca dos seus amigos de sempre. Todos têm sensivelmente as mesmas idades. A Sara ficou muito abalada com a morte do marido e nunca quis perceber porquê, comenta. Ela não é nada diferente de mim, da Carolina e do Victor. Somos todos autistas, ainda que ela nunca tenha tido coragem de assumir, conclui.
Rótulos? As pessoas não sabem o que são rótulos, refere Carlos de 59 anos (nome fictício). Aprenderam essa palavra e repetem-na. Agora chamam-me velho. Já me chamaram paneleiro. Também já fui desalojado e mendigo. Em criança chamavam-me de mal educado, refere. Quando estive hospitalizado pela última vez disseram-me que podia ser do espectro do autismo. Foi a primeira vez que alguém me disse que eu era algo e me explicou calmamente o que isso significava, conclui.
Por que é que agora querem saber de mim?, questiona inicialmente Francisco de 76 anos (nome fictício). Nunca ninguém quis saber e agora vêm fazer essas perguntas todas. É de desconfiar, comenta. Mesmo que seja para falar do autismo, refere. Até aos 17 anos ainda me levavam às consultas. Depois disso nada. E até hoje nada! Percebe as minhas dúvidas?, pergunta-me.
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